Alguns desses mitos são mais obscuros. Como o de que os vinhos feitos a partir de uvas americanas da espécie Vitis labrusca, em particular da variedade Isabel (ou Isabelle, como é conhecida mundo afora), devem ser condenados porque possuem em sua composição uma substância extremamente tóxica chamada metanol.
Quando ouvi isso pela primeira vez fiquei bem desconfiado, de tal forma que foi impossível não pesquisar o tema um pouco mais a fundo.
Hora de descascar mais uma cebola!
Descoberta e batizada na Carolina do Sul, EUA, em 1816, a Isabella/Isabel rapidamente ganhou notoriedade na região de Nova York, sendo utilizada tanto como uva de mesa quanto como base para vinhos tranquilos e espumantes. De lá a variedade se espalhou para diversos cantos do mundo graças à sua boa resistência ao calor e à sua capacidade de crescer bem em condições adversas.
Os vinhos feitos de Isabel têm corpo leve para médio e um perfil aromático que remete a morangos, além de trazer o olfato característico dos néctares produzidos com Vitis labrusca. O cultivo dessa uva é muito difundido nas Américas, e um grande exemplo disso é o fato dela ainda ocupar a maior área de vinhedos do Rio Grande do Sul. Já na Europa é proibido produzir vinhos de Isabel, muito embora existam pessoas que gostam de fazê-lo em casa para consumo próprio.
Apesar da atual restrição europeia ao cultivo de vinhas de Isabel, nem sempre isso foi assim. A linha do tempo das proibições sobre uvas americanas na Europa é um pouco confusa. Foi na década de 30 que alguns países europeus começaram a proibir o cultivo de uvas americanas, como a Itália, que introduziu o veto à venda e distribuição de vinhos feitos com estas variedades. Já a França proibiu as plantações de Isabel em 1935, no que alguns consideram puro medo do retorno da praga da filoxera (um inseto safado que suga as raízes e mata as videiras de Vitis vinifera) enquanto outros vêm uma tática de protecionismo no sentido de garantir a hegemonia local das castas europeias. Mais tarde, em 1979, a Comissão Europeia consolidou a proibição continental de vinhos europeus produzidos com uvas americanas.
O bullying enológico continuou de forma bagunçada em muitas regiões, contra os mais diversos vinhos penetras. Um deles, no entanto, é emblemático por causa da justificativa dada pelo governo italiano quanto ao seu banimento: a alegação de que era muito difícil controlar os níveis de metanol num produto feito com a variedade Isabel. Fragolino é o seu nome, um termo que vem do italiano fragola e significa morango, referência ao aroma característico aportado pela Isabel durante o processo de fermentação.
Originalmente fabricado em variações tinta, branca e espumante nas regiões de Vêneto e Friuli, o Fragolino é hoje produto de contrabando dentro do próprio país onde nasceu. Sua proibição mais recente encontra ecos em diversas fontes, que apontam como gatilho o escândalo ocorrido no país em 1986, que resultou na morte de 20 pessoas e causou dezenas de casos de cegueira devido à ingestão de vinhos com elevado teor de metanol. Garrafas com proporções de até 5,7% de metanol foram identificadas, cargas inteiras destinadas à França e à Alemanha foram apreendidas e a Dinamarca chegou a proibir a entrada de todas as bebidas italianas após descobrir que o vermute também estava contaminado por metanol.
Existe, porém, um pequeno detalhe que as duvidosas fontes online não revelam. Nenhum parágrafo das páginas que pesquisei aponta para a pobre Isabel como participante ou sequer coadjuvante dessa terrível tragédia. Os vinhos com níveis de metanol estourados ostentavam nomes nobres como Barbera e Dolcetto.
E agora, José? Tudo o que sei é que os Barberas e Dolcettos ainda estão por aí, mas não o pobre Fragolino, tão inocente e antes tão degustado por locais e turistas... O vinho caiu em desgraça e hoje só pode ser encontrado em lugares isolados na Suíça ou no mercado negro italiano, despejado nas taças a partir de vergonhosas garrafas sem rótulo. Se você já viu o Fragolino nos supermercados italianos, saiba que ele é falso pois não passa de um vinho normal aromatizado artificialmente.
A única verdade de todo esse imbróglio é que o envenenamento dos vinhos italianos com metanol foi um ato criminoso. A probabilidade é grande de que a má fama da Isabel com relação ao teor de metanol surgiu da associação entre este evento e a proibição do Fragolino. Mesmo assim, tenho certeza que algumas pessoas podem e vão perguntar:
Mas e se a Isabel for mesmo venenosa?
Já ouviram falar no ditado de que onde há fumaça há fogo?
Já ouviram falar no ditado de que onde há fumaça há fogo?
O metanol (CH3OH), também conhecido como álcool metílico, é um dos muitos tipos diferentes de álcool de característica líquida e inflamável. Ao contrário do que acontece com o álcool convencional, conhecido como álcool etílico, o metanol é extremamente prejudicial ao sistema nervoso quando consumido em doses excessivas, podendo causar cegueira, coma e morte. Por outro lado, o metanol é um composto natural encontrado normalmente nos seres humanos, que o produzem a partir da metabolização de certas substâncias nos rins e o exalam na própria respiração.
Acredito que a principal dúvida de todos nós, ao nos depararmos com o boato do metanol no vinho, é saber quanto dessa substância existe na nossa garrafa diária, seja ela de Isabel ou de qualquer outra variedade vínica. Afinal, a ingestão de 10 ml de metanol é suficiente para destruir o nervo ótico e causar cegueira permanente. Já 30 ml pode ser potencialmente fatal. Os efeitos tóxicos começam imediatamente após a ingestão, com sintomas que se parecem com os do álcool mas logo evoluem para um quadro muito grave.
De modo geral, todos os vinhos contêm metanol, em doses que variam em média de 50 a 300 mg/l. No entanto, vários estudos apontam que vinhos feitos de Vitis labrusca realmente possuem mais metanol em sua composição que os vinhos feitos com Vitis vinifera. Este aqui, por exemplo, identificou uma média de 133 mg/l em Isabel/Bordô/Concord contra 57 mg/l em Cabernet Sauvignon. Este outro já mostra 394 mg/l nos Vitis labrusca e 147 mg/l em Malbec/Muscat, sendo que o limite da legislação brasileira é de 350 mg/l.
O principal motivo para essa diferença é uma substância chamada pectina, um polissacarídeo existente nas paredes de plantas terrestres e em seus frutos, que existe em maior quantidade nas videiras da espécie Vitis labrusca. Como o metanol presente no vinho é gerado pela hidrólise dos grupos metoxílicos da pectina da uva ao longo da fermentação, devemos sim esperar um teor de metanol um pouco mais alto nos vinhos feitos com uvas americanas.
Além da espécie de uva, há ainda dois outros fatores que contribuem para aumentar o teor de metanol nos vinhos. Um deles é o uso industrial da enzima péctica ou pectinase, produto regularmente empregado pelas vinícolas para melhorar a cor do suco, promover uma melhor extração de taninos e facilitar o processo de filtração final. Outro fator que pode provocar índices mais altos de metanol é o tempo de maceração do processo, uma vez que a pectina permanece por mais tempo no mosto quanto maior for o contato do suco com as cascas. Esta última observação explica, por exemplo, porque o teor de metanol é sempre mais alto nos vinhos tintos do que nos brancos.
Mas enfim, o metanol que está dentro da minha garrafa de vinho feito com uva Isabel é perigoso ou não?
Vamos exercitar um pouco de matemática para entender o que significam as concentrações de metanol expostas mais acima.
Sabe-se que a densidade do metanol é de 792 kg/m3, ou 792 g/l (muito próxima à do álcool comum). O limiar máximo considerado seguro para a ingestão de metanol é 2,5 ml (2 g), a intoxicação aguda ocorre com 10 ml (8 g) e uma potencial fatalidade pode acometer a pessoa que consumir 30 ml (24 g).
Sabendo que o teor limite da legislação brasileira para o metanol é de 350 mg/l, a parcela desta substância presente numa garrafa de vinho contendo 350 mg/l é de 0,045%. Considerando esse percentual, conclui-se que o volume admissível de metanol numa garrafa de 750 ml é de 0,3375 ml.
Portanto, ao consumir um vinho com 350 mg/l de metanol (0,045%):
• é perfeitamente seguro beber até 5,9 garrafas;
• para se intoxicar gravemente com metanol seria preciso beber 29,6 garrafas.
Eis uma memoriazinha de cálculo básica para os números acima:
Utilizando os mesmos tipos de cálculo, podemos continuar a avaliar os limites de metanol em diversos outros mercados.
Considerando o limite da União Europeia, por exemplo, que é de 250 mg/l para brancos e rosés e 400 mg/l (0,051%) para tintos, temos o seguinte cenário no caso dos tintos:
• é perfeitamente seguro beber até 5,2 garrafas;
• para se intoxicar gravemente com metanol seria preciso beber 26,1 garrafas.
Já nos Estados Unidos a FDA (Food and Drug Administration) diz que um teor de 0,1% de metanol no vinho é seguro, e que acima disso ele é considerado adulterado. Para 0,1%, o volume de metanol numa garrafa de 750 ml é de 0,75 ml.
Portanto, ao consumir um vinho com 0,1% de teor de metanol (ou 792 mg/l):
• é perfeitamente seguro beber até 2,6 garrafas;
• para se intoxicar gravemente com metanol seria preciso beber 13,3 garrafas.
Observa-se, portanto, que mesmo com valores de metanol um pouco acima dos limites estabelecidos seria impossível se intoxicar bebendo vinho, independente da variedade de uva utilizada para fabricá-lo. Quem em sã consciência bebe 2 garrafas e meia numa refeição ou numa sessão de degustação?
Extrapolando a conta para o máximo admissível de metanol que pode haver numa única garrafa, ou seja, uma quantidade de 2,5 g ou 2 ml, chegamos aos valores de corte de 2.110 mg/l ou 0,26% em volume. Somente para se ter uma ideia, no escândalo dos vinhos italianos envenenados a tal garrafa com 5,7% de metanol continha cerca de 42 ml da substância, quantidade 21 vezes maior que o limite admissível de ingestão segura! Uma única taça desse vinho batizado é capaz de destruir o sistema nervoso de um ser humano e deixá-lo cego, que dirá a garrafa inteira.
O que é possível concluir de tudo isso?
Ainda que alguns "iluminados" insistam em preservar esse mito infundado, agora posso dizer com toda a certeza que ninguém vai passar mal por beber vinhos feitos com uvas Isabel. Para pôr um ponto final ao assunto, confiram aqui um estudo exclusivo feito somente sobre os vinhos de Isabel.
O processo de fermentação de uvas para a produção de vinho é feito ao redor de todo o mundo, inclusive por pessoas e famílias comuns em seus próprios quintais. Independente da qualidade dos vinhos resultantes de processos caseiros, podemos ficar seguros pois nenhum deles será capaz de matar devido ao teor de metanol resultante. A única coisa com a qual devemos nos preocupar, no caso de produção caseira, é com o processo de destilação, algo que exige muito mais cuidado e pode sim resultar em bebidas com um perigoso percentual de metanol.
E se algum dos nobres leitores encontrar uma garrafa do autêntico Fragolino e ainda estiver com medo do metanol assassino diluído dentro dela, pode mandar pra mim que terei o maior prazer em livrá-lo do fardo.
Além dos links colocados acima, os artigos abaixo também contribuíram como fontes de pesquisa para este texto:
http://m.wine-searcher.com/grape-834-isabella
http://en.wikipedia.org/wiki/Pectin
http://winemakersacademy.com/pectic-enzymes-wine
http://revistaadega.uol.com.br/artigo/as-enzimas_6553.html
http://www.oenoblog.info/pt/2009/01/la-filtrabilidad-de-los-vinos
http://en.wikipedia.org/wiki/Methanol#Human_metabolite
http://homedistiller.org/intro/methanol/methanol
http://www.expo2015.org/magazine/en/economy/methanol-wine---we-learned-our-lesson-.html
http://www.thedrinksbusiness.com/2011/08/top-10-wine-scandals/7
http://content.time.com/time/magazine/article/0,9171,961046,00.html
http://www.italybeyondtheobvious.com/the-fragolino-controversy
http://www.science20.com/small_world/exploration_into_the_mystery_behind_fragolino
http://forums.egullet.org/topic/142525-fragolino-the-illegal-wine-venezia-venice-experiences-not-the-spark
http://modernfarmer.com/2013/10/best-wine-cant-buy-fragolino
http://viewitaly.blogspot.com.br/2006/08/tgi-fragolino-free-wine.html
http://www.shroomery.org/forums/showflat.php/Number/13869845
http://www.homebrewtalk.com/showthread.php?t=364196
http://www.homebrewtalk.com/showthread.php?t=57733
Obrigada! Me ajudou bastante na pesquisa sobre o caso de 1986. Estou lendo CArlos Petrini e lá ele menciona como foi doloroso ver milhares de agricultores pagar a conta pelo envenenamento por metanol provocado por alguns produtores do noroeste da Itália e assistir a tristeza do Sr. Beppe Colla, da BArolo em prantos na televisão por conta da tragédia...
ResponderExcluirOlá, Fabiana, que bom que o texto foi útil de alguma forma!
ExcluirE agradeço pela preciosa informação em sua resposta, que agrega ainda mais a esse desafortunado capítulo da viticultura italiana.
Nos Açores-Portugal a uva Isabel produziu durante muitos anos o chamado "vinho de cheiro" (termo açoriano) e em Portugal continental chamam-lhe #"morangueiro". Na verdade, a Comunidade Europeia intriduziu sérias restrições ao cultivo da uva Isabel. Porém, o maior problema esteve sempre associado à utilização de toda a planta (incluindo caules) que associados a processos pouco cuidados com a destilação originavam "vinhos de cheiro" com muito metanol. Hoje, ainda há produtores (raros) deste vinho mas maiores cuidados no seu fabrico diminuíram "alguns" riscos. Na verdade, o metanol a prazo faz mesmo "estragos" na substância branca do cérebro...
ResponderExcluirBoa tarde materia interessante
ResponderExcluir"A única coisa com a qual devemos nos preocupar, no caso de produção caseira, é com o processo de destilação, algo que exige muito mais cuidado e pode sim resultar em bebidas com um perigoso percentual de metanol."
ResponderExcluirFiquei surpreendido com esta afirmação. Na minha região, em Portugal, fabricam aguardente caseira a partir deste vinho ou da casca das uvas. Existe um risco sério em consumir esta aguardente? Obrigado
Olá, Rui. Não estou familiarizado com o processo de fabricação de aguardente, mas imagino que existe algum nível de destilação envolvido. Neste caso, o risco de consumir níveis mais elevados de alcoois (todos os tipos de álcool) é maior, incluindo aí o metanol.
ExcluirObrigado pela pesquisa, muito informativa. Parece que as pessoas em Portugal (pelo menos na Zona Centro) estão formatadas para pensar que a morangueira não presta. Será que é porque comem a casca? Ou será que é propaganda enganosa de grandes produtores de vinho? Sei que no Norte o vinho caseiro da morangueira é apreciado
ResponderExcluirQue interessante, Morangueira é como a uva Isabel é conhecida em Portugal?
ExcluirIndependente de qual uva seja, nunca ouvi falar que comer a casca faz mal!
Antigamente toda gente bebia Morangueiro e as Mulheres e os Homens duravam até aos 100 anos ou mais.. com vinho quê dizem Alguns que não é bom.. e agora que tudo é só bom vinho , estamos todos muito mais contaminados .. era bom era deixar de utilizar Quimicos e tantas outras porcarias que nos vão matando pouco a pouco, até nesse aspecto o vinho Morangueiro Americano é Nobre, não precisa de pesticidas que tanto e tantas coisas destroem..é preciso é saber fazer vinho de Uvas ! Não de pôs e outras senas malucas..Salute 🍷
ResponderExcluirObrigado pour estas explicações não conhecia esse problema, visto ter familia no minho lá ainda se produz algun litros mas prefiro o nosso vinho maduro boa corage a todos
ResponderExcluirMuito obrigado pelo texto após certas pesquisas caí aqui, acho que tomei vinho falsificado fiquei mito mal por 3 dias, acabei exagerando tomando cerca de 2 garrafas e meia de vinho em uma festa mas o mal estar não foi normal, agora irei cuidar mais com o consumo de vinhos de marcas, preferencialmente cabernet sauvignon.
ResponderExcluirO vinho do doce morangueiro é uma delícia.
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