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sexta-feira, 21 de julho de 2017

Carmim, Olaria Tinto Suave 2015 (Portugal)

Vinho: Olaria Tinto Suave
Safra: 2015
Região/Categoria: Vinho de Mesa
País: Portugal
Vinícola: Carmim (www.carmim.eu)


Há mais ou menos um ano atrás postei aqui mesmo sobre a experiência de pedir o vinho Olaria Tinto em taça, no caso durante uma de nossas sempre agradáveis visitas ao Madero Steakhouse.

Num misto de desinformação e também graças às mazelas do mercado de vinho nacional, saí do restaurante com um mistério na cabeça: se o Olaria distribuído no Brasil é rotulado como um vinho suave, por que minha percepção sobre ele foi a de um vinho extremamente seco e algo tânico, completamente diferente da ideia que todos nós possuímos de como deve ser um vinho suave?

Pois bem, esses dias atrás fiz a prova dos nove. Passei no mercado e levei para casa uma garrafa do Olaria Suave 2015.

O resultado me surpreendeu.

Grupo Carmim

Atuando na região do Alentejo, o Grupo Carmim é formado por três empresas, sendo a principal delas a Carmim (Cooperativa Agrícola de Reguengos de Monsaraz), fundada em 1971 por um grupo de 60 viticultores e que hoje conta com com cerca de 850 associados. Completam o grupo a Monsaraz Vinhos SA, responsável por toda a comercialização e distribuição no canal Horeca, e a Enoforum, empresa que cuida da exportação do grupo, atualmente feita para mais de 34 países.
Horeca (também HoReCa ou HORECA) é uma abreviação silábica para as palavras Hotel/Restaurant/Café, usada na Europa para uma ampla gama regulatória sobre a indústria de hoteis, bares, restaurantes e serviços relacionados (como o catering).
Acredito que quase todas as principais marcas da Carmim têm presença no Brasil, distribuídas por aqui pela importadora Porto a Porto.


O Vinho degustado: Olaria Tinto Suave 2015

Categorizado como vinho de mesa (sem especificação de região de origem), este Olaria é de fato suave, mas não suave como os suaves brasileiros com gosto de xarope adocicado. Elaborado a partir das castas Castelão (35%), Tempranillo (35%) e Trincadeira (30%), exibe aromas de fruta bem madura, e em boca tem certo corpo em meio à doçura não excessiva. Não chega a ser enjoativo, mas fica mais palatável quando bebido sozinho, sem acompanhar comida, a uma temperatura mais baixa.

E agora, José?

Existe uma explicação simples para a diferença de paladar observada entre a taça que provei um ano atrás e a taça mais recente. Minha percepção não me enganou afinal.

O vinho de antes era de fato seco, e o de agora "suave".

A razão para isso é que no restaurante a taça devia ser proveniente do Olaria Tinto bag-in-box, que não traz nada de suave em seus dados técnicos e deve corresponder ao Olaria Tinto original cujos dados estão publicados no site do Grupo Carmim. A distinção entre o seco e o suave é inclusive corroborada ao acessar as páginas do Olaria Tinto bag-in-box e do Olaria Tinto Suave no site da importadora (não existe a opção de vinho seco em garrafa).


Adicionalmente, se eu tivesse prestado mais atenção teria notado que em nenhum momento a carta do restaurante mencionava o termo "suave".

Fica, portanto, esclarecido o motivo da diferença. E também fica a dica a todos que decidirem provar uma taça do Olaria em restaurantes, visto que ele parece ser figurinha fácil em seções de vinhos por taça. Pelo menos por aqui.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Vinho × Metanol

A ciência por trás da produção de vinhos é hoje uma atividade muito bem consolidada, regulada por lei e propagada academicamente por meio de cursos de ensino superior voltados à enologia. Ainda assim, num universo onde a apreciação do produto jamais deixará de lado a interpretação pessoal e uma bem-vinda subjetividade, muitos mitos e histórias mirabolantes foram e continuam a ser criados.

Alguns desses mitos são mais obscuros. Como o de que os vinhos feitos a partir de uvas americanas da espécie Vitis labrusca, em particular da variedade Isabel (ou Isabelle, como é conhecida mundo afora), devem ser condenados porque possuem em sua composição uma substância extremamente tóxica chamada metanol.

Quando ouvi isso pela primeira vez fiquei bem desconfiado, de tal forma que foi impossível não pesquisar o tema um pouco mais a fundo.

Hora de descascar mais uma cebola!


Descoberta e batizada na Carolina do Sul, EUA, em 1816, a Isabella/Isabel rapidamente ganhou notoriedade na região de Nova York, sendo utilizada tanto como uva de mesa quanto como base para vinhos tranquilos e espumantes. De lá a variedade se espalhou para diversos cantos do mundo graças à sua boa resistência ao calor e à sua capacidade de crescer bem em condições adversas.

Os vinhos feitos de Isabel têm corpo leve para médio e um perfil aromático que remete a morangos, além de trazer o olfato característico dos néctares produzidos com Vitis labrusca. O cultivo dessa uva é muito difundido nas Américas, e um grande exemplo disso é o fato dela ainda ocupar a maior área de vinhedos do Rio Grande do Sul. Já na Europa é proibido produzir vinhos de Isabel, muito embora existam pessoas que gostam de fazê-lo em casa para consumo próprio.


Apesar da atual restrição europeia ao cultivo de vinhas de Isabel, nem sempre isso foi assim. A linha do tempo das proibições sobre uvas americanas na Europa é um pouco confusa. Foi na década de 30 que alguns países europeus começaram a proibir o cultivo de uvas americanas, como a Itália, que introduziu o veto à venda e distribuição de vinhos feitos com estas variedades. Já a França proibiu as plantações de Isabel em 1935, no que alguns consideram puro medo do retorno da praga da filoxera (um inseto safado que suga as raízes e mata as videiras de Vitis vinifera) enquanto outros vêm uma tática de protecionismo no sentido de garantir a hegemonia local das castas europeias. Mais tarde, em 1979, a Comissão Europeia consolidou a proibição continental de vinhos europeus produzidos com uvas americanas.

O bullying enológico continuou de forma bagunçada em muitas regiões, contra os mais diversos vinhos penetras. Um deles, no entanto, é emblemático por causa da justificativa dada pelo governo italiano quanto ao seu banimento: a alegação de que era muito difícil controlar os níveis de metanol num produto feito com a variedade Isabel. Fragolino é o seu nome, um termo que vem do italiano fragola e significa morango, referência ao aroma característico aportado pela Isabel durante o processo de fermentação.

Originalmente fabricado em variações tinta, branca e espumante nas regiões de Vêneto e Friuli, o Fragolino é hoje produto de contrabando dentro do próprio país onde nasceu. Sua proibição mais recente encontra ecos em diversas fontes, que apontam como gatilho o escândalo ocorrido no país em 1986, que resultou na morte de 20 pessoas e causou dezenas de casos de cegueira devido à ingestão de vinhos com elevado teor de metanol. Garrafas com proporções de até 5,7% de metanol foram identificadas, cargas inteiras destinadas à França e à Alemanha foram apreendidas e a Dinamarca chegou a proibir a entrada de todas as bebidas italianas após descobrir que o vermute também estava contaminado por metanol.

Existe, porém, um pequeno detalhe que as duvidosas fontes online não revelam. Nenhum parágrafo das páginas que pesquisei aponta para a pobre Isabel como participante ou sequer coadjuvante dessa terrível tragédia. Os vinhos com níveis de metanol estourados ostentavam nomes nobres como Barbera e Dolcetto.


E agora, José? Tudo o que sei é que os Barberas e Dolcettos ainda estão por aí, mas não o pobre Fragolino, tão inocente e antes tão degustado por locais e turistas... O vinho caiu em desgraça e hoje só pode ser encontrado em lugares isolados na Suíça ou no mercado negro italiano, despejado nas taças a partir de vergonhosas garrafas sem rótulo. Se você já viu o Fragolino nos supermercados italianos, saiba que ele é falso pois não passa de um vinho normal aromatizado artificialmente.

A única verdade de todo esse imbróglio é que o envenenamento dos vinhos italianos com metanol foi um ato criminoso. A probabilidade é grande de que a má fama da Isabel com relação ao teor de metanol surgiu da associação entre este evento e a proibição do Fragolino. Mesmo assim, tenho certeza que algumas pessoas podem e vão perguntar:

Mas e se a Isabel for mesmo venenosa?
Já ouviram falar no ditado de que onde há fumaça há fogo?


O metanol (CH3OH), também conhecido como álcool metílico, é um dos muitos tipos diferentes de álcool de característica líquida e inflamável. Ao contrário do que acontece com o álcool convencional, conhecido como álcool etílico, o metanol é extremamente prejudicial ao sistema nervoso quando consumido em doses excessivas, podendo causar cegueira, coma e morte. Por outro lado, o metanol é um composto natural encontrado normalmente nos seres humanos, que o produzem a partir da metabolização de certas substâncias nos rins e o exalam na própria respiração.

Acredito que a principal dúvida de todos nós, ao nos depararmos com o boato do metanol no vinho, é saber quanto dessa substância existe na nossa garrafa diária, seja ela de Isabel ou de qualquer outra variedade vínica. Afinal, a ingestão de 10 ml de metanol é suficiente para destruir o nervo ótico e causar cegueira permanente. Já 30 ml pode ser potencialmente fatal. Os efeitos tóxicos começam imediatamente após a ingestão, com sintomas que se parecem com os do álcool mas logo evoluem para um quadro muito grave.

De modo geral, todos os vinhos contêm metanol, em doses que variam em média de 50 a 300 mg/l. No entanto, vários estudos apontam que vinhos feitos de Vitis labrusca realmente possuem mais metanol em sua composição que os vinhos feitos com Vitis vinifera. Este aqui, por exemplo, identificou uma média de 133 mg/l em Isabel/Bordô/Concord contra 57 mg/l em Cabernet Sauvignon. Este outro já mostra 394 mg/l nos Vitis labrusca e 147 mg/l em Malbec/Muscat, sendo que o limite da legislação brasileira é de 350 mg/l.

O principal motivo para essa diferença é uma substância chamada pectina, um polissacarídeo existente nas paredes de plantas terrestres e em seus frutos, que existe em maior quantidade nas videiras da espécie Vitis labrusca. Como o metanol presente no vinho é gerado pela hidrólise dos grupos metoxílicos da pectina da uva ao longo da fermentação, devemos sim esperar um teor de metanol um pouco mais alto nos vinhos feitos com uvas americanas.

Além da espécie de uva, há ainda dois outros fatores que contribuem para aumentar o teor de metanol nos vinhos. Um deles é o uso industrial da enzima péctica ou pectinase, produto regularmente empregado pelas vinícolas para melhorar a cor do suco, promover uma melhor extração de taninos e facilitar o processo de filtração final. Outro fator que pode provocar índices mais altos de metanol é o tempo de maceração do processo, uma vez que a pectina permanece por mais tempo no mosto quanto maior for o contato do suco com as cascas. Esta última observação explica, por exemplo, porque o teor de metanol é sempre mais alto nos vinhos tintos do que nos brancos.

Mas enfim, o metanol que está dentro da minha garrafa de vinho feito com uva Isabel é perigoso ou não?

Vamos exercitar um pouco de matemática para entender o que significam as concentrações de metanol expostas mais acima.

Sabe-se que a densidade do metanol é de 792 kg/m3, ou 792 g/l (muito próxima à do álcool comum). O limiar máximo considerado seguro para a ingestão de metanol é 2,5 ml (2 g), a intoxicação aguda ocorre com 10 ml (8 g) e uma potencial fatalidade pode acometer a pessoa que consumir 30 ml (24 g).

Sabendo que o teor limite da legislação brasileira para o metanol é de 350 mg/l, a parcela desta substância presente numa garrafa de vinho contendo 350 mg/l é de 0,045%. Considerando esse percentual, conclui-se que o volume admissível de metanol numa garrafa de 750 ml é de 0,3375 ml.

Portanto, ao consumir um vinho com 350 mg/l de metanol (0,045%):
• é perfeitamente seguro beber até 5,9 garrafas;
• para se intoxicar gravemente com metanol seria preciso beber 29,6 garrafas.

Eis uma memoriazinha de cálculo básica para os números acima:


Utilizando os mesmos tipos de cálculo, podemos continuar a avaliar os limites de metanol em diversos outros mercados.

Considerando o limite da União Europeia, por exemplo, que é de 250 mg/l para brancos e rosés e 400 mg/l (0,051%) para tintos, temos o seguinte cenário no caso dos tintos:
• é perfeitamente seguro beber até 5,2 garrafas;
• para se intoxicar gravemente com metanol seria preciso beber 26,1 garrafas.

Já nos Estados Unidos a FDA (Food and Drug Administration) diz que um teor de 0,1% de metanol no vinho é seguro, e que acima disso ele é considerado adulterado. Para 0,1%, o volume de metanol numa garrafa de 750 ml é de 0,75 ml.

Portanto, ao consumir um vinho com 0,1% de teor de metanol (ou 792 mg/l):
• é perfeitamente seguro beber até 2,6 garrafas;
• para se intoxicar gravemente com metanol seria preciso beber 13,3 garrafas.

Observa-se, portanto, que mesmo com valores de metanol um pouco acima dos limites estabelecidos seria impossível se intoxicar bebendo vinho, independente da variedade de uva utilizada para fabricá-lo. Quem em sã consciência bebe 2 garrafas e meia numa refeição ou numa sessão de degustação?

Extrapolando a conta para o máximo admissível de metanol que pode haver numa única garrafa, ou seja, uma quantidade de 2,5 g ou 2 ml, chegamos aos valores de corte de 2.110 mg/l ou 0,26% em volume. Somente para se ter uma ideia, no escândalo dos vinhos italianos envenenados a tal garrafa com 5,7% de metanol continha cerca de 42 ml da substância, quantidade 21 vezes maior que o limite admissível de ingestão segura!  Uma única taça desse vinho batizado é capaz de destruir o sistema nervoso de um ser humano e deixá-lo cego, que dirá a garrafa inteira.


O que é possível concluir de tudo isso?

Ainda que alguns "iluminados" insistam em preservar esse mito infundado, agora posso dizer com toda a certeza que ninguém vai passar mal por beber vinhos feitos com uvas Isabel. Para pôr um ponto final ao assunto, confiram aqui um estudo exclusivo feito somente sobre os vinhos de Isabel.

O processo de fermentação de uvas para a produção de vinho é feito ao redor de todo o mundo, inclusive por pessoas e famílias comuns em seus próprios quintais. Independente da qualidade dos vinhos resultantes de processos caseiros, podemos ficar seguros pois nenhum deles será capaz de matar devido ao teor de metanol resultante. A única coisa com a qual devemos nos preocupar, no caso de produção caseira, é com o processo de destilação, algo que exige muito mais cuidado e pode sim resultar em bebidas com um perigoso percentual de metanol.

E se algum dos nobres leitores encontrar uma garrafa do autêntico Fragolino e ainda estiver com medo do metanol assassino diluído dentro dela, pode mandar pra mim que terei o maior prazer em livrá-lo do fardo.

Além dos links colocados acima, os artigos abaixo também contribuíram como fontes de pesquisa para este texto:
http://m.wine-searcher.com/grape-834-isabella
http://en.wikipedia.org/wiki/Pectin
http://winemakersacademy.com/pectic-enzymes-wine
http://revistaadega.uol.com.br/artigo/as-enzimas_6553.html
http://www.oenoblog.info/pt/2009/01/la-filtrabilidad-de-los-vinos
http://en.wikipedia.org/wiki/Methanol#Human_metabolite
http://homedistiller.org/intro/methanol/methanol
http://www.expo2015.org/magazine/en/economy/methanol-wine---we-learned-our-lesson-.html
http://www.thedrinksbusiness.com/2011/08/top-10-wine-scandals/7
http://content.time.com/time/magazine/article/0,9171,961046,00.html
http://www.italybeyondtheobvious.com/the-fragolino-controversy
http://www.science20.com/small_world/exploration_into_the_mystery_behind_fragolino
http://forums.egullet.org/topic/142525-fragolino-the-illegal-wine-venezia-venice-experiences-not-the-spark
http://modernfarmer.com/2013/10/best-wine-cant-buy-fragolino
http://viewitaly.blogspot.com.br/2006/08/tgi-fragolino-free-wine.html
http://www.shroomery.org/forums/showflat.php/Number/13869845
http://www.homebrewtalk.com/showthread.php?t=364196
http://www.homebrewtalk.com/showthread.php?t=57733

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Vinhos de mesa e as uvas americanas

Alguém por aí já se perguntou o porquê dos vinhos de mesa brasileiros serem tão massacrados por crítica e público, todos doutrinados a apreciarem somente os vinhos feitos de castas que vieram de berço europeu e pertencem à espécie Vitis vinifera?

Não vale alegar que é porque tais vinhos são feitos de uvas americanas, “não adequadas” à produção de vinho.

Certo dia, enquanto eu degustava um Merlot encorpado, o questionamento subiu-me à mente como as cristalinas borbulhas de um bom espumante. Qual o motivo de tanto desprezo, uma vez que – excetuando os produtos suaves que recebem adição de açúcar – os vinhos de mesa são produzidos exatamente da mesma forma que os vinhos considerados finos?

Foi então que comecei a pesquisar sobre os vinhos de mesa brasileiros e suas origens, e sobre onde eu poderia encontrar produtos equivalentes fora do país. Vou tentar resumir os resultados de minhas muitas leituras e as eventuais mudanças que pretendo fazer em minha forma de enxergar os vinhos de mesa.


A origem da diferença

A origem do desprezo pelos vinhos de mesa nacionais é histórica, e se estende muito além de nossas fronteiras. Foi na Europa, conhecida também como Velho Mundo e historicamente considerada o berço da civilização moderna, que a bebida chamada vinho evoluiu por séculos. As uvas utilizadas no continente, referidas obviamente de castas europeias e pertencentes à espécie Vitis vinifera, são todas as que hoje conhecemos como fonte dos “verdadeiros” vinhos. Cabernet Sauvignon, Merlot, Chardonnay, etc.

Como era de se esperar, com a colonização dos demais continentes as uvas Vitis vinifera se espalharam pelo planeta. O Novo Mundo foi invadido e vagarosamente infestado por estas castas nobres, enquanto algumas das variedades locais, comumente denominadas uvas americanas e não pertencentes à variedade Vitis vinifera, resistiram à invasão estrangeira por serem nativas e naturalmente mais adaptadas ao solo local. As uvas americanas perseveraram principalmente nas regiões onde as cepas europeias mostraram dificuldade em se adaptar nos mesmos padrões de qualidade e volume.

A inevitável mistura de uvas de vários continentes e os cruzamentos entre as espécies (forçados ou não) resultaram nas chamadas uvas híbridas, que em geral apresentam resistência maior às doenças e ao frio, e assim como as americanas possuem um perfil gustativo e aromático distinto das já estabelecidas uvas do velho mundo.

Fisicamente, as uvas americanas diferem das uvas europeias na menor espessura de suas cascas e no tamanho do fruto, que em média é muito maior. É por isso que as uvas americanas são mais indicadas ao consumo in natura. Além disso, sua menor concentração de açúcar tende a render mostos menos alcoolicos, o que aliado aos aromas diferenciados resultam em vinhos de natureza completamente distinta daqueles produzidos com castas europeias.

Hoje em dia os vinhos feitos a partir de uvas americanas são produzidos exclusivamente nas Américas, mas em sua maior parte nos Estados Unidos, no Canadá e no Brasil. Acredito que no início da invasão estrangeira eles tinham todas as chances de se manterem em pé de igualdade com os vinhos feitos com uvas europeias, mas não foi isso o que aconteceu. Principalmente no Brasil.

fonte: Wine Folly

Por que vinho de mesa?

O termo “de mesa”, como difundido em terras tupiniquins, é uma designação unicamente associada às uvas de mesa, que são aquelas que consumimos in natura e pertencem em sua maioria às variedades de uvas americanas da espécie Vitis labrusca e outras espécies híbridas. Vinhos elaborados a partir de castas Vitis vinifera são vinhos “finos”.

Dito isso, é preciso deixar claro que o vinho de mesa como conhecemos por aqui não é o mesmo vinho de mesa de países como a França (Vin de Table / Vin de France) ou a Itália (Vino da Távola). Lá estes vinhos são feitos com as mesmas castas Vitis vinifera das AOCs e DOCs, a única diferença é que eles não seguem nenhuma das regras estabelecidas por essas normas. E esses vinhos podem ser secos ou “suaves”, cujos correspondentes na França e na Itália seriam os moelleux e os amabile, respectivamente.

Tudo bem que em sua grande maioria os vinhos de mesa de lá também sejam produzidos de maneira mais simples e visando volume, mas sempre existem exceções em matéria de qualidade. Aqueles super-toscanos safados, por exemplo, já foram vino da távola um dia, e só deixaram de sê-lo quando algum figurão benevolente sugeriu a criação da categoria IGT.

Vale lembrar que na Europa a vinificação de uvas de origem americana é terminantemente proibida. Portanto, é impossível encontrar por lá um vinho de mesa que seja similar aos vinhos de mesa brasileiros.


A legislação brasileira faz sentido

Ao analisar a origem e a evolução do vinho no Brasil, percebe-se que as regras da legislação do mercado de vinho brasileiro fazem completo sentido. Estas regras surgiram principalmente por causa dos vinhos de mesa, que são feitos a partir de uvas americanas e vendidos com as mais variadas proporções de açúcar em sua composição final. Secos são os vinhos com teor de açúcar abaixo de 4 g/l, suaves são aqueles com teor acima de 20 g/l e tudo o que está entre estes extremos é demi-seco.

O grande problema é que a classificação acima também é aplicada ao vinho fino feitos de castas europeias, seja ele nacional ou importado, algo que lá fora simplesmente não existe. E se isso causa confusão quando os vinhos importados entram no país, o problema é de quem bebe e precisa se informar melhor. As importadoras não têm culpa, pois só estão cumprindo com as normas.

A marginalização dos vinhos de mesa brasileiros

Ainda que haja uma conscientização cada vez maior sobre a alegada superioridade dos vinhos feitos a partir de variedades europeias, é inegável que os vinhos de mesa (especialmente os suaves) ainda figuram como a principal preferência da maioria da população brasileira. Basta tocar no assunto em qualquer roda casual de conhecidos das mais diversas classes sociais. Se entre dez pessoas alguém além de você mencionar Merlot ou Sauvignon Blanc, já se está no lucro. Infelizmente, a probabilidade maior é de que algum engraçadinho do sexo masculino tire sarro da sua cara se você disser Pinot Noir em voz alta.

Brincadeiras à parte, os motivos para o que mencionei acima são muitos, sendo o maior deles o baixo custo final do vinho de mesa para o consumidor. Mas é preciso destacar também a sua inicial facilidade de apreciação (são docinhos e leves) e o grande período histórico que precedeu a abertura de mercado ocorrida na década de 90. A este último aspecto soma-se a inércia e a letargia dos produtores nacionais de vinhos de mesa, que com raras exceções nada fizeram para tentar elevar o status de seus produtos diante da classe fina emergente. O desprezo foi e é tão grande em alguns casos que hoje em dia muita gente toma coquetel composto achando que é vinho.

Façamos uma comparação rápida entre o mercado de vinhos feitos com uvas americanas do Brasil e dos EUA, por exemplo. Quais são os vinhos de mesa brasileiros famosos que estampam no rótulo as variedades de uva a partir das quais são produzidos? Praticamente nenhum. São quase todos tintos/brancos de mesa suaves/secos. Muito provavelmente por uma decisão safada de marketing, a única cepa que aparece com proeminência em rótulos de maior saída é a tal Bordô, uma híbrida de várias Vitis labrusca cujo nome correto é Yves Noir. Que chique seria se esse nome passasse a ser usado, não? Aposto que teria muito entendido por aí que começaria a degustar Bordô como se estivesse bebendo Syrah.

Já nos Estados Unidos a história parece ser diferente. Vinho de mesa é uma designação meio sem sentido, uma vez que qualquer vinho de preço reduzido é genericamente qualificado como Table Wine. Os Barefoot, Yellow Tail e Woodbrigde, por exemplo, são considerados vinho de mesa para os norteamericanos. E quanto aos vinhos feitos com variedades nativas? Ora pois, os rótulos de lá mostram (com orgulho, talvez?) nomes como Concord e Niagara, que são as mais conhecidas para nós brasileiros. Mas há ainda cepas diferentes e interessantes como Catawba, Chancellor, Muscadine/Scuppernong, Norton, Aurore e Mustang, para ficar em algumas das uvas mais proeminentes de outras espécies que não pertencem nem à vinifera e muito menos à labrusca.


Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde os vinhos feitos de uvas americanas não parecem ter vergonha nenhuma de sua própria identidade, para achar informações de como é a composição dos blends dos vinhos de mesa nacionais ou encontrar designações varietais como Isabel ou Niagara é preciso ir um pouco mais a fundo neste mercado relativamente marginalizado, saindo do circuito viciado dos supermercados ou viajando ao coração da região sul do país.

Seguem alguns exemplos de vinhos de mesa secos onde a variedade é devidamente indicada no rótulo:

Sei que isso pode soar como sacrilégio para alguns, mas depois de ler bastante sobre o assunto tomei a decisão de não mais olhar com maus olhos os vinhos de mesa secos. Mas calma lá, isso não quer dizer que vou começar a garimpar empórios de bairro ou encher minha adega com esses tipos peculiares de vinho. O que quero dizer é que sejam eles feitos a partir de Chardonnay ou de Niagara, de Cabernet Sauvignon ou Concord, tratarei a todos com o mesmo respeito e reverência. Já os vinhos de mesa suaves continuam mais ou menos como estavam, relegados a festas juninas e encontros familiares onde a escolha de bebida esteja completamente fora de minha alçada.

Referências de pesquisa para este texto:
http://winefolly.com/review/native-wine-grapes-of-america
http://winefolly.com/tutorial/table-grapes-vs-wine-grapes
http://www.stufftoblowyourmind.com/blog/american-wine-from-american-grapes
http://palatepress.com/2010/06/wine/wine-indigenous-american-grape-varieties-a-primer
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bord%C3%B4_(casta_de_uva)
http://en.wikipedia.org/wiki/Ives_noir
http://www.avindima.com.br/?p=6013
http://www.cnpuv.embrapa.br/tecnologias/cultivares
http://revistas.fca.unesp.br/index.php/energia/article/view/998/pdf_23
http://tudodevinho.blogspot.com.br/2016/04/o-vinho-fino-e-o-vinho-de-mesa-no-brasil.html
http://en.wikipedia.org/wiki/Vin_de_France
http://en.wikipedia.org/wiki/Table_wine

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Uma experiência com vinho tinto de mesa seco

No último fim de semana decidi realizar uma experiência que senti que precisava fazer, em homenagem a um passado que já pertenceu a muitos entusiastas brasileiros de vinho.

Pergunte a qualquer pessoa adulta de que forma elas inicialmente tomaram conhecimento desse universo. 90% responderão que foi por meio dos vinhos suaves, em sua maioria vinhos de “garrafão”. Eu faço parte desse grupo, porém não bebo vinho de garrafão há muitos anos.

Decidi preparar-me para a experiência ao receber ilustres visitas em minha casa no mês passado. Foi-me solicitado comprar algumas garrafas de vinho suave para serem consumidas durante o almoço. Acabei escolhendo o Campo Largo (Famiglia Zanlorenzi), mas também levei para casa uma garrafa do Chalise tinto de mesa seco, produzido pela Salton a partir de uvas Isabel, Concord e Seibel. Que como todos sabem não são uvas pertencentes à espécie Vitis vinifera e, portanto, não são adequadas à produção de vinhos finos.

Beberiquei o Campo Largo para acompanhar as visitas, mais uma vez relembrando o sabor adocicado característico dos vinhos de garrafão. Alguns goles não matam ninguém, e minha percepção de sabor foi a mesma inicialmente registrada em memória décadas atrás. Já o Chalise seria algo novo, uma vez que eu não me lembro de jamais ter provado vinho seco feito a partir das tradicionais uvas usadas em vinho suave.

A oportunidade surgiu na última manhã de Domingo. Um Torrontés argentino (Cepas Elegidas, Mendoza 2014) abriu os trabalhos enquanto minha esposa cozinhava e as visitas chegavam. Durante o almoço o Chalise foi aberto, e finalmente pude concluir a tal experiência. No olfato senti algo muito parecido com o que se sente do vinho suave, porém não com a mesma intensidade, já no paladar não havia nada além de um gosto metálico, plano, carente de vivacidade. Sem amargor, mas também sem qualquer atrativo que convidasse a mais uma taça.

Vinícola Salton, Chalise Tinto de Mesa
Parece bonito na foto, mas não é

O Chalise seco é muito ruim. Ouso dizer, a partir dessa experiência de desapego, que se o assunto for uvas não-viníferas e eu tiver que escolher entre as duas categorias, eu prefiro o vinho suave ao vinho seco.

Em tempo: o Chalise já foi chamado de Linha de Base da Salton, uma denominação abandonada que sequer é mencionada no site da vinícola. A não ser, é claro, que você acesse uma página que ainda está no ar mas não é divulgada. Empurrar o Chalise para debaixo do tapete dessa forma parece ser bobo, mas a atitude é perfeitamente compreensível para uma empresa que deseja se destacar no mercado por seus vinhos finos, e não por vinhos de mesa – açucarados ou não – vendidos a menos de 10 reais em postos de gasolina e mercados de bairros periféricos.

E chega, garanto que não vou escrever mais sobre Vitis labrusca e respectivos clones. A não ser que role algum tipo de compensação financeira ou ameaça de morte.