quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Vinhos para o dia a dia, honestos, fáceis de beber

Existem algumas expressões largamente utilizadas no universo do vinho que me causam estranheza, para não dizer desgosto. Uma delas é a que dá início ao título desta postagem.

O vinho para o dia a dia, como muitos gostam de dizer e escrever.


O que é um vinho para o dia a dia, afinal?

É um vinho que pode ser consumido com as refeições? Nos dias de semana, a qualquer momento? Nas ocasiões carentes de pompa? Em copos de plástico ou americanos? Acompanhando um canapé, um bolinho de macaxeira, um bauru com o dobro de queijo, um pote de uvas passas, um pequi bem cozido, um pão seco, uma geleia de araticum?

O que vem à minha mente sempre que vejo pessoas trazendo à tona essa famigerada expressão é que o vinho para o dia a dia nada mais é que um vinho baratinho, desses que pode ser buscado em cinco minutos ali no mercado da esquina. Será isso mesmo? É preciso colocar as coisas em perspectiva, uma vez que o que é barato para mim pode não ter a mesma classificação para os outros e vice-versa. Vide Neymar e seu já famoso Vega Sicília Único safra 1976, por exemplo.


Se eu cagasse dinheiro e usasse notas de 100 dólares para limpar o nariz e a bunda, como Carrey e Daniels fazem numa cena daquele filme dos irmãos Farrelly, meus vinhos para o dia a dia poderiam incluir diversas safras de Vegas Sicílias, Pêras Mancas, Opus Ones, Sassicaias, Pétrus e os mais diversos Grand Crus franceses.

Mas não é esse o caso. E não será o caso nem se eu puder heptuplicar meus rendimentos ou ganhar na megassena, porque não sou louco e nem estou disposto a alimentar um mercado tão restrito (existe ainda a casta dos colecionadores, que coisa!). Em contrapartida, também me recuso a me encaixar naquela vasta categoria de consumidores que são muito felizes no seu dia a dia com Chapinha, Sangue de Boi e os mais diversos coquetéis compostos.


Enfim, o que quero dizer é que todos os vinhos que tomo são para o (meu) dia a dia. Mas não é por isso que vou sair por aí falando isso deles. O dia a dia já ocorre por default. Está implícito.

Aproveitando o ensejo, vejamos também a percepção que me causam alguns adjetivos que costumam acompanhar a expressão acima. Como “honesto” ou “fácil”.

Este é um vinho para o dia a dia, honesto, fácil de beber.

Honesto? Ah, finalmente, agora sim! Estamos falando do vinho barato (não o barato no sentido ligeiramente pejorativo da palavra / cheap, não inexpensive), o vinho "correto" que por atender às limitações de nosso poder aquisitivo qualifica-se também como vinho para o dia a dia.

E se for honesto e fácil, então? Um vinho que vale o que custa e, como uma Skol, deve descer redondo?

O problema é quando o danado do vinho é desonesto e difícil... Seria este um vinho desequilibrado? Pode haver sim muita variação de uma garrafa para outra, mas na minha opinião um vinho é difícil de beber somente quando ele não satisfaz meu gosto, pronto. Sucos de madeira são terríveis, mas tem gente que não se sente à vontade bebendo outra coisa. Independente de preferências, o que não gosto mesmo é quando o caboclo fala que o vinho é fácil de beber porque é branco (a.k.a. vinhos de moça). Até concordo em atribuir o termo a vinhos de baixo teor alcoolico e corpo leve, independente da cor ou do tipo de uva. Estes descem mais fácil mesmo, né?

E os vinhos desonestos? Desonesto é o vinho que não vale o que custa, é isso? Todos sabemos o quanto é decepcionante gastar mais do que achamos factível num vinho que daqui a alguns meses pode não ser tudo o que esperamos dele. Mas raramente você vê gente por aí falando que certo vinho é desonesto, o que se vê é que tal vinho não vale o que custa.

O que fazer para fomentar a honestidade então? É simples. Se você tem medo, não gaste seu rico dinheirinho com essas coisas superfaturadas, infladas por longevas e bem-sucedidas campanhas de marketing, que não entregam nada a mais que os exemplares de menor custo.

Olhe lá, se você tem condições não há absolutamente nada de errado em encher a adega com garrafas acima de R$ 300. O dinheiro é seu, ora bolas. Em qualquer caso a realidade é cruel para todos, ou seja, quanto mais cara a garrafa maior é o risco de nos depararmos com um vinho desonesto.


Se eu cagasse dinheiro pouco estaria me lixando se aquele vinho de mil reais fosse uma merda. Gente podre de rica que bebe seus vinhos não dá a mínima se um vinho é ou não honesto. O risco para eles não existe.

Em contrapartida, na nossa realidade tudo acaba mesmo sendo baseado em risco: o terror dos enófilos de carteirinha e o medo dos que bebem casualmente. Só não se preocupa com isso o tiozinho que vai ao mercado da esquina no Sábado à tarde buscar o vinho de Domingo.

Quanto à minha relação com o risco, tudo o que posso dizer é que às vezes entro numa loja de vinhos me sentindo "aventureiro". Bem às vezes. E somente para uma garrafa.

Termino essa postagem dizendo que vocês jamais me verão escrevendo ou dizendo que tal vinho é honesto, fácil de beber, feito para o dia a dia. Se eu tiver cometido tal deslize peço que primeiramente me desculpem, e em seguida me apontem o local e a data porque vou lhes enviar um brinde.

3 comentários:

  1. Edward, eu não vejo o mesmo problema que você com as expressões 'dia a dia' e 'fácil de beber'. Devo inclusive tê-las usado algumas vezes.

    Eu certamente não bebo vinhos do dia-a-dia todos os dias. Certos dias, eu escolho vinhos especiais. Normalmente, quando recebo visitas, ou visito alguém. Ou em alguma data especial. Os que não são vinhos para datas especiais, são vinhos do dia-a-dia.

    A definição do que é do dia-a-dia é relativa? Depende de cada pessoa? É verdade. Mas também é praticamente qualquer outro adjetivo que se possa descrever um vinho. Agradável? Pesado? Leve? Ácido? Adstringente? Fantástico? Delicioso? Equilibrado? Interessante? Alcoólico? Qualquer adjetivo é subjetivo. O que é ... para um pode não ser para outro. Mesmo certos conceitos pseudo-objetivos que aprendemos nas aulas de degustação, como corpo e acidez serão sempre interpretados da mesma forma por diferentes degustadores, não importa quantos títulos tenha (vide divergências de avaliações entre críticos famosos).

    E quanto ao 'fácil de beber', na minha interpretação (afinal, adjetivos são subjetivos, e suas interpretações, também são), se refere exatamente a vinhos que, nas suas palavras, 'descem mais fácil mesmo'. Eu posso apreciar um encorpado Amarone, ou um Porto Colheita antigo, mas mesmo que não me desagradem, não são vinhos fáceis de beber.

    Quanto ao termo 'honesto', também não gosto; principalmente porque eu interpreto que ele não se limita unicamente a classificar entre vinhos honestos e desonestos. Honestos seriam apenas os vinhos medianos (outra expressão subjetiva), de forma que vinhos excepcionais acabariam como 'não-honestos'. Fica estranho, né?

    Enfim, é apenas a minha opinião. Abraço.

    ResponderExcluir
  2. Pena que não tem edição de comentários... faltou um 'não' em uma frase...

    "Mesmo certos conceitos pseudo-objetivos que aprendemos nas aulas de degustação, como corpo e acidez NÃO serão sempre interpretados da mesma forma por diferentes degustadores, não importa quantos títulos tenha (vide divergências de avaliações entre críticos famosos)."

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Rodrigo!

      É exatamente esse tipo de discussão que eu queria incitar, mais ou menos direcionada à relatividade do que poderia ser considerado algo simples ou do dia-a-dia, entrando aí também a percepção de valor.

      É por isso que evito ao máximo usar essas expressões. Sempre existe uma maneira de dizer algo semelhante sem recorrer a elas. Mas sabe-se lá se não mudo de opinião mais pra frente, né? Já fiz isso várias vezes!

      Um abraço e muito obrigado pelo comentário.

      Excluir