Safra: 2013
Região: Rheinhessen
País: Alemanha
Vinícola: Einig-Zenzen (http://www.einig-zenzen.de, http://zenzenwinesusa.com)
Tudo começou no dia em que avistei aquela garrafa azul no armário da sala de dona Diva, avó da minha esposa. Conversa vai, conversa vem, a curiosidade ia aumentando à medida em que meu conhecimento sobre vinho melhorava. Até o dia em que a cantei para ganhar de presente a garrafa. E ganhei. Um legítimo Liebfraumilch, safra de 1996 da mais famosa marca distribuída em nosso país nos anos 90.
É óbvio que eu conheço a má fama deste vinho, e é claro que eu não tinha a mínima intenção de beber algo que devia estar morto. Por outro lado, pensei que seria com certeza muito inusitado abri-lo ao lado da safra mais recente. Eu só não sabia que conseguir a bendita garrafa seria tão difícil, sendo que cheguei até a relatar parte desta saga aqui mesmo no blogue. O mais engraçado é que depois de toda a atribulação que tive para importar a garrafa de São Paulo acabei encontrando a safra 2014 na semana passada, em dois supermercados da cidade...
Enfim, o momento da *aham* grande prova vertical de Liebfraumilch chegou numa manhã ensolarada de Domingo. Mas antes de contar como foi a experiência vamos recapitular um pouco da saga desse emblemático vinho.
Originalmente batizado de Liebfrauenmilch, cujo significado literal é “leite da amada”, dizem por aí que este vinho adocicado nasceu numa igreja da cidade alemã de Worms ainda no século 18. Inicialmente produzido pelos monges, a fama que o marcou foi também responsável por desfigurá-lo com o passar do tempo. No início do século 20, por exemplo, as regiões cujos vinhos podiam usar o nome Liebfraumilch aumentaram sem que qualquer controle de qualidade fosse imposto. E foi somente em 1989 que as atuais regras de produção da marca foram promulgadas, de tal forma que este peculiar e hoje muito odiado vinho ostenta com certo “orgulho” a denominação QbA (Qualitätswein bestimmter Anbaugebiete), que está acima do que poderia ser chamado de vinho de mesa na terra de Herr Kurt Wagner. Por sinal, dizem as más línguas que os vinhos de mesa alemães são horríveis, ao contrário do que ocorre nos países vizinhos (atenção às designações Tafelwein e Landwein).
Muitos consideram que o Liebfraumilch quase acabou com a reputação do vinho alemão nas décadas de 80 e 90 devido à baixa qualidade das garrafas exportadas para todo o mundo. Eu ri muito quando li que a indústria vinícola alemã passou na verdade por três grandes desastres: a 1ª. Guerra Mundial, a 2ª. Guerra Mundial e o Liebfraumilch.
Como um dos mercados onde esse vinho mais fez sucesso, aqui no Brasil inúmeras histórias são contadas por aqueles que vivenciaram o auge do vinho da garrafa azul (veja alguns links no final desta postagem), que foi capitaneado pelo Josef Friederich importado pela Expand e cujo apelo foi tão forte que chegou a afetar vinícolas nacionais de renome como Salton e Aurora. Ainda hoje, por exemplo, é possível encontrar o Liebfraumilch feito pela Aurora a preços abaixo de R$ 15 (pero ele não vem numa garrafa azul). Obviamente será impossível ver qualquer menção a este Liebfraumilch em seu website – se o vinho é motivo de vergonha para os alemães, que se negam a admitir sua existência e o despacham todo para a exportação, que dirá para aqueles que ousam reproduzi-lo em outras terras.
Atualmente o nome Liebfraumilch é usado somente como um sinônimo para vinhos brancos genéricos e adocicados (que se encaixam na denominação “suave” usada no Brasil). As variedades de uva utilizadas nunca aparecem no rótulo, mas a norma exige que o vinho seja produzido somente nas regiões de Rheinhessen, Pfalz (Palatinado), Nahe ou Rheingau e que pelo menos 70% dele seja feito a partir de Riesling, Müller-Thurgau, Bacchus, Silvaner e/ou Kerner. O açúcar residual deve estar na faixa de 18 a 40 g/l.
Sobre a Einig-Zenzen
A vinícola Einig-Zenzen foi fundada em 1939 na cidade de Valwig, situada à margem direita do rio Mosela. A partir de um início tímido, que se valia do passado vitivinícola dos ancestrais dos fundadores, a companhia mudou-se para a cidade de Kaisersesch e expandiu-se em nível internacional, chegando à invejável capacidade de engarrafamento de 40.000 garrafas por hora, tudo isso ainda mantido sob controle familiar.
Atualmente a empresa produz cerca de 3,2 milhões de garrafas por ano, exportando seus produtos para cerca de 50 países. Suas marcas mais conhecidas são a Peter Brum, E-Z, Dr. Zenzen e True Love, além do spritzer Eden’s Dream (uma variação do frisante ao estilo do Keep Cooler).
Em 2009 a Einig-Zenzen obteve os direitos sobre a marca Josef Friederich, que continua a ser distribuída mundialmente. Lembram do que mencionei mais acima sobre vergonha? Desistam de encontrar qualquer menção a este vinho no site da empresa, ou mesmo do Liebfraumilch lançado dentro da linha Dr. Zenzen (mas aqui está ele). Aparentemente, cada mercado externo tem o seu, e mesmo a marca Josef Friederich pode ter rótulos variantes dependendo do país.
O vinho degustado: Josef Friedrich Liebfraumilch, Rheinhessen 2013
Como anunciado, a garrafa foi aberta em conjunto com a safra 1996. Esta última estava com a rolha completamente podre, e mesmo tentando extraí-la com meu recém-adquirido saca-rolhas tipo pinça a danada acabou indo para dentro da garrafa.
O jeito foi passar a maior parte do vinho para uma jarra. Como esperado, ele estava morto. Opaco ao extremo, de coloração atijolada-escura e marrom. Tive medo até de aproximar o nariz da taça, mas tive que fazê-lo em prol de minha educação enófila... Fui atingido em cheio pelos "aromas" químicos de álcool, mertiolate, iodo, açúcar e fruta podre apanhada em terreno baldio. Em boca era álcool puro, absolutamente intragável (sim, eu bebi um pouco).
Duas contrastantes linhas do tempo em taças
Sobre a garrafa do 2013, que possui fechamento com screw-cap, o aspecto visual do vinho não deixa nada a desejar a nenhum bom vinho branco. Olfato agradável de pêras, seguido por sensação tátil levemente untuosa e adocicada. Infelizmente, o aspecto suave do vinho deixa-o enjoativo já na segunda taça, o que o faz ser uma companhia maçante quando encarada sozinha. Realmente, é muito difícil voltar a encarar coisas suaves depois que se acostuma com vinhos secos. Ainda assim, se for para beber um Liebfraumilch que seja comendo algo sem pensar muito sobre.
É praticamente impossível saber exatamente qual é a composição deste vinho, em qualquer safra que seja. Indo pelo material de uma das importadoras, as castas utilizadas são Silvaner, Riesling e Müller-Thurgau, em percentuais desconhecidos. Há outras fontes, no entanto, que apontam a presença de Sauvignon Blanc.
No final das contas quem vai se importar mesmo? De minha parte já fiz o dever de casa, agora o jeito é compensar e ir atrás de um vinho alemão que seja bom!
Confiram nos links a seguir algumas histórias sobre o Liebfraumilch, escritas por quem viveu o seu auge:
http://www.escrivinhos.com/2008/08/saga-das-garrafas-azuis.html (AGO-2008)
http://piresdemiranda.com.br/site/o-fenomeno-da-garrafa-azul-2 (AGO-2010)
http://piresdemiranda.com.br/site/o-fenomeno-da-garrafa-azul-final (AGO-2010)
http://vinhosamoresetaca.blogspot.com.br/2013/05/uma-volta-aos-anos-90-mappin-e.html (MAI-2013)
http://omundoeovinho.blogspot.com.br/2015/12/o-liebfraumilch.html (DEZ-2015)
Outras fontes de leitura sobre o Liebfraumilch:
http://www.wine-searcher.com/regions-rheinhessen
http://www.foodreference.com/html/artliebfraumilch.html