sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Miolo Wine Group, RAR Collezione Gewürztraminer, Campos de Cima da Serra 2011 (Brasil)

Vinho: RAR Collezione Gewürztraminer
Safra: 2011
Região: Campos de Cima da Serra
País: Brasil
Vinícola: Miolo Wine Group (http://www.miolo.com.br)


Apesar de minha experiência com a casta ser pífia, as poucas oportunidades que tive de experimentar a Gewürztraminer foram bem agradáveis. Confesso que tinha poucas expectativas com relação à garrafa desta postagem, muito em parte devido à safra já um pouco avançada e à prova não tão empolgante do RAR Collezione Viognier que veio no mesmo pacote.

Mas eu estava enganado.

Como é bom quando nossas expectativas são quebradas da melhor forma possível, não é mesmo?

Um Pouco de História

Apesar de sua impressionante presença de mercado, a Miolo foi fundada há relativamente pouco tempo, tendo iniciado suas atividades no início dos anos 90. A herança do patriarca italiano Giuseppe Miolo foi além do nome da vinícola, que se expandiu nos anos seguintes a atualmente conta com cerca de 40% de market share no mercado nacional de vinhos finos.

A Miolo Wine Group de hoje no Brasil e no mundo (fonte: site da vinícola)

Durante seu plano de expansão, a Miolo adquiriu outras vinícolas e estabeleceu várias parcerias nacionais e internacionais. Em 2006 a empresa passou a ser chamada de Miolo Wine Group, e em 2009, por exemplo, anunciou a compra da Vinícola Almadén, passando a atuar num segmento de mercado em que ainda não participava.

A sede da vinícola fica no Vale dos Vinhedos, em Bento Gonçalves, e possui uma estrutura de enoturismo que conta com sala de degustação, visitação às caves e aos parreirais e cursos de degustação. Para muitos é uma visita obrigatória se você estiver conhecendo a região. Eu já estive lá, e você?


Campos de Cima da Serra

Campos de Cima da Serra é uma das regiões produtoras de uvas mais frias e elevadas do Brasil, com 1.000 metros de altitude. O clima é temperado frio, de verões amenos, com temperatura máxima média de 25°C e mínima média de 15°C. No inverno, mais frio pela altitude, a temperatura máxima está em torno de 16°C e a mínima em torno de 7°C, sendo comum a ocorrência de geadas e até mesmo neve.

A aliança da Miolo com o empresário Raul Anselmo Randon resultou na produção dos vinhos RAR, cujas uvas são plantadas em Campos de Cima da Serra e todos os anos seguem para a sede da vinícola, no Vale dos Vinhedos, onde os vinhos são elaborados.


O vinho degustado: RAR Collezione Gewürztraminer, Campos de Cima da Serra 2011

Como informado no contrarrótulo, as uvas que foram usadas na elaboração deste vinho estavam parcialmente atacadas pelo fungo Botrytis cinerea, responsável pela chamada podridão nobre (o fungo seca a uva e extrai a umidade de dentro dela, concentrando em seu interior os açúcares). A ficha de informação do vinho aponta um percentual de 20% de uvas com podridão nobre.

Além do fator acima, o dulçor que se percebe em boca é devido também à interrupção da fermentação alcoolica por intermédio da redução brusca da temperatura, o que preservou o açúcar residual do vinho e lhe deu a característica de demi-seco. Não houve envelhecimento em carvalho, somente em tanques de aço inox por um período de um ano.

Levamos o vinho conosco em noite de rolha livre no restaurante Taberna Portuguesa. Ao ser aberto, exalou aromas frutados e uma leve pegada mineral, muito agradável. A cor era límpida, e não correspondeu nem um pouco ao que eu esperava de um vinho branco de mais idade, um indicativo de que a garrafa poderia ter tranquilamente permanecido na adega por mais algum tempo.

Decidi harmonizá-lo por contraste com a lagosta à pescadora, que leva na receita molho de limão, manteiga e pimentão (depois de uma fantástica porção de rã ao olho e óleo). A presença redonda e equilibrada em boca casou muito bem com ambos os pratos, especialmente o principal, e o dulçor praticamente desapareceu em meio à textura da lagosta.

Vinho muito bom, realmente um espetáculo em se tratando de um branco demi-seco.

sábado, 17 de setembro de 2016

Se a reputação precede o vinho...

Desde que comecei a me envolver mais com o mundo dos vinhos, há pouco mais de um ano e meio, sempre tive por meta variar as garrafas degustadas. Não ficar sempre no mesmo produtor ou região, e se possível ir atrás dos exemplares mais diferenciados que pudesse encontrar. Repetir uma garrafa jamais, pelo menos por um bom tempo.

Sim, sou meio extremista. Eu proibi a esposa de estocar a adega com Casal Garcia, por exemplo.

Por mais incrível que possa parecer, conheci pessoas que pensam o contrário e se mantêm fieis a um único vinho ou a um único estilo de vinho. Compram sempre as mesmas garrafas, às vezes caixas do mesmo vinho, mas não com o intuito nobre de abri-las de maneira compassada para apreciar sua evolução. A ideia é prová-los no dia a dia, e essas pessoas são perfeitamente felizes com algo que lhes é agradável e lhes traz prazer. Sair da rotina é algo que chega quase a doer fisicamente, tamanho é o risco e o medo de tomar algo que não lhes agrade da mesma forma ou na mesma intensidade.

Apesar de valorizar a variedade sempre e continuar buscando degustar vinhos diferenciados, recentemente passei por uma experiência que me fez reavaliar um pouco este conceito, mudando uma mentalidade que com certeza me levou a provar vinhos que talvez não fossem as escolhas mais adequadas para quem está começando.

A ideia é ficar mais ou menos na intersecção, se é que vocês me entendem

Alguém duvida que os melhores jogadores de basquete atuem nos Estados Unidos, que os melhores chocolates são produzidos na Suíça, que o melhor pequi é o que vem de Goiás, que o melhor serviço de streaming atual é a Netflix ou que os melhores frutos do mar são aqueles preparados frescos? Ainda que algumas pessoas discordem dessas afirmações, a probabilidade é que para a maioria elas sejam verdades consolidadas, seguras, contra as quais fica difícil oferecer argumentos contrários.

Pois assim são também muitos aspectos no mundo do vinho. Ir contra eles significa colocar-se em risco, trilhar um caminho não tão seguro e incorrer numa maior probabilidade de erro. Onde devemos ir para provar os melhores Pinot Noir? Na Borgonha, claro. É na Espanha que podemos encontrar as melhores garrafas de Tempranillo, mas onde estarão os melhores Rieslings? Se alguém disser algo diferente de Alsácia e Alemanha está com certeza muito equivocado. As melhores garrafas de Carménère não estariam exclusivamente no Chile? Alguém consegue imaginar algum outro país produzindo Nebbiolo e Barbera com a mesma consistência com que essas variedades são trabalhadas no Piemonte?

O caminho mais racional para entender um estilo de vinho ou uma variedade de uva é buscar por produtos cuja reputação os precede.

A probabilidade de provar um excelente Touriga Nacional, por exemplo, é muito maior com um exemplar português do que com uma garrafa norteamericana. Isso absolutamente não significa que os EUA sejam incapazes de produzir bons Tourigas, mas no universo vitivinícola como um todo essa é uma aposta arriscada para qualquer enófilo que busca escolher as melhores garrafas para sua adega.


Caso em questão: Tannat. Casta originária da França e conhecida por ser casca grossa (literalmente) e pelos taninos agressivos, a Tannat foi difundida em diversos outros países mas todas as fontes apontarão que foi no Uruguai que ela melhor se adaptou. O sucesso foi tamanho que nosso pequeno vizinho fez campanha para que a Tannat fosse reconhecida como sua casta emblemática. E conseguiu.

Deve-se esperar, portanto, que os melhores Tannats sejam provenientes do Uruguai. Principalmente no quesito custo-benefício, uma vez que os exemplares provenientes da AOC Madiran, na França, são vendidos por aqui a preços proibitivos (e assim a uva vai seguindo o mesmo caminho já trilhado pela Malbec e pela Carmenere).

Para ratificar o exposto, exponho abaixo fotos da pequena overdose que tive de Tannat há algumas semanas atrás, em ordem cronológica. A amostragem não foi tão abrangente e nem o calibre dos vinhos tão elevado, mas ficou evidente para mim que os mais equilibrados foram realmente os uruguaios.

Montes Toscanini, Reserva Familiar Tannat, Canelones 2015 (Uruguai)

Vinho jovem de corpo leve, mas o que lhe falta de densidade sobra na textura equilibrada, um caldo aveludado com olfato de amoras e sem qualquer indício de taninos. A influência do carvalho ao final da fermentação foi mínima e na minha opinião ideal. Fantástico vinho, pelo que entrega e também por quanto custa (um dos mais baratos da carta do Madero Steakhouse de Cuiabá).

Bodega Garzón, Garzón Tannat, Maldonado 2013 (Uruguai)

Vinho de boa tipicidade, com ótima estrutura de taninos e o esperado leque aromático de frutas negras sinalizado pela coloração rubi escura. O restante da garrafa ficou ainda melhor depois de um tempo de descanso intermediário.

Establecimiento Juanicó, Don Pascual Varietal Tannat, Canelones 2015 (Uruguai)

Mais um Tannat de corpo leve, que desceu macio. Desconsiderando o exemplar Reservado comercializado em terras tupiniquins, esse é o rótulo de entrada da Família Deicas / Juanicó, e chama a atenção pela maciez em boca.

Bodegas El Esteco, Michel Torino Colección Tannat, Salta 2012 (Argentina)

Esse eu procurei de birra, para fugir do eixo Brasil-Uruguai que domina o mercado nacional. O olfato é de frutas negras maduras, com um pouco de chocolate e tabaco e presença sutil de madeira no paladar, além de acidez bem presente. Não tão equilibrado quanto os anteriores, mas ainda assim agradável.

Pizzato Vinhas e Vinhos, Fausto Tannat, Serra Gaúcha 2014 (Brasil)

Este aqui foi marcado por uma presença mais acentuada de carvalho já no olfato, além de taninos dispersos que encobrem a característica frutada e deixam o vinho mais rústico.

Coop. Viníciola Aurora, Aurora Reserva Tannat, Serra Gaúcha 2014 (Brasil)

Até hoje o melhor Tannat brasileiro que provei. Olfato intenso de fruta madura como ameixa e amoras, paladar de textura suave e taninos finos, num vinho saboroso com ótimo equilíbrio em boca. Dentro da linha Aurora Reserva, este Tannat foi a variedade que mais me agradou. E também foi a única garrafa deste grupo que foi capaz de fazer frente aos exemplares uruguaios.


Obviamente ainda estou por provar garrafas de Tannat mais potentes, e a oportunidade com certeza chegará. Os que vieram antes destes foram quase todos brasileiros, e admito que nenhum deles tocou meu paladar como eu esperei que tivessem tocado. Ui!

Vão por mim, as aventuras podem ser agradáveis também, mas se quiserem conhecer a Tannat de maneira mais racional ou simplesmente não errar na escolha de garrafa, optem por um vinho uruguaio.

Saúde e um grande abraço a todos!

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Vinho × Metanol

A ciência por trás da produção de vinhos é hoje uma atividade muito bem consolidada, regulada por lei e propagada academicamente por meio de cursos de ensino superior voltados à enologia. Ainda assim, num universo onde a apreciação do produto jamais deixará de lado a interpretação pessoal e uma bem-vinda subjetividade, muitos mitos e histórias mirabolantes foram e continuam a ser criados.

Alguns desses mitos são mais obscuros. Como o de que os vinhos feitos a partir de uvas americanas da espécie Vitis labrusca, em particular da variedade Isabel (ou Isabelle, como é conhecida mundo afora), devem ser condenados porque possuem em sua composição uma substância extremamente tóxica chamada metanol.

Quando ouvi isso pela primeira vez fiquei bem desconfiado, de tal forma que foi impossível não pesquisar o tema um pouco mais a fundo.

Hora de descascar mais uma cebola!


Descoberta e batizada na Carolina do Sul, EUA, em 1816, a Isabella/Isabel rapidamente ganhou notoriedade na região de Nova York, sendo utilizada tanto como uva de mesa quanto como base para vinhos tranquilos e espumantes. De lá a variedade se espalhou para diversos cantos do mundo graças à sua boa resistência ao calor e à sua capacidade de crescer bem em condições adversas.

Os vinhos feitos de Isabel têm corpo leve para médio e um perfil aromático que remete a morangos, além de trazer o olfato característico dos néctares produzidos com Vitis labrusca. O cultivo dessa uva é muito difundido nas Américas, e um grande exemplo disso é o fato dela ainda ocupar a maior área de vinhedos do Rio Grande do Sul. Já na Europa é proibido produzir vinhos de Isabel, muito embora existam pessoas que gostam de fazê-lo em casa para consumo próprio.


Apesar da atual restrição europeia ao cultivo de vinhas de Isabel, nem sempre isso foi assim. A linha do tempo das proibições sobre uvas americanas na Europa é um pouco confusa. Foi na década de 30 que alguns países europeus começaram a proibir o cultivo de uvas americanas, como a Itália, que introduziu o veto à venda e distribuição de vinhos feitos com estas variedades. Já a França proibiu as plantações de Isabel em 1935, no que alguns consideram puro medo do retorno da praga da filoxera (um inseto safado que suga as raízes e mata as videiras de Vitis vinifera) enquanto outros vêm uma tática de protecionismo no sentido de garantir a hegemonia local das castas europeias. Mais tarde, em 1979, a Comissão Europeia consolidou a proibição continental de vinhos europeus produzidos com uvas americanas.

O bullying enológico continuou de forma bagunçada em muitas regiões, contra os mais diversos vinhos penetras. Um deles, no entanto, é emblemático por causa da justificativa dada pelo governo italiano quanto ao seu banimento: a alegação de que era muito difícil controlar os níveis de metanol num produto feito com a variedade Isabel. Fragolino é o seu nome, um termo que vem do italiano fragola e significa morango, referência ao aroma característico aportado pela Isabel durante o processo de fermentação.

Originalmente fabricado em variações tinta, branca e espumante nas regiões de Vêneto e Friuli, o Fragolino é hoje produto de contrabando dentro do próprio país onde nasceu. Sua proibição mais recente encontra ecos em diversas fontes, que apontam como gatilho o escândalo ocorrido no país em 1986, que resultou na morte de 20 pessoas e causou dezenas de casos de cegueira devido à ingestão de vinhos com elevado teor de metanol. Garrafas com proporções de até 5,7% de metanol foram identificadas, cargas inteiras destinadas à França e à Alemanha foram apreendidas e a Dinamarca chegou a proibir a entrada de todas as bebidas italianas após descobrir que o vermute também estava contaminado por metanol.

Existe, porém, um pequeno detalhe que as duvidosas fontes online não revelam. Nenhum parágrafo das páginas que pesquisei aponta para a pobre Isabel como participante ou sequer coadjuvante dessa terrível tragédia. Os vinhos com níveis de metanol estourados ostentavam nomes nobres como Barbera e Dolcetto.


E agora, José? Tudo o que sei é que os Barberas e Dolcettos ainda estão por aí, mas não o pobre Fragolino, tão inocente e antes tão degustado por locais e turistas... O vinho caiu em desgraça e hoje só pode ser encontrado em lugares isolados na Suíça ou no mercado negro italiano, despejado nas taças a partir de vergonhosas garrafas sem rótulo. Se você já viu o Fragolino nos supermercados italianos, saiba que ele é falso pois não passa de um vinho normal aromatizado artificialmente.

A única verdade de todo esse imbróglio é que o envenenamento dos vinhos italianos com metanol foi um ato criminoso. A probabilidade é grande de que a má fama da Isabel com relação ao teor de metanol surgiu da associação entre este evento e a proibição do Fragolino. Mesmo assim, tenho certeza que algumas pessoas podem e vão perguntar:

Mas e se a Isabel for mesmo venenosa?
Já ouviram falar no ditado de que onde há fumaça há fogo?


O metanol (CH3OH), também conhecido como álcool metílico, é um dos muitos tipos diferentes de álcool de característica líquida e inflamável. Ao contrário do que acontece com o álcool convencional, conhecido como álcool etílico, o metanol é extremamente prejudicial ao sistema nervoso quando consumido em doses excessivas, podendo causar cegueira, coma e morte. Por outro lado, o metanol é um composto natural encontrado normalmente nos seres humanos, que o produzem a partir da metabolização de certas substâncias nos rins e o exalam na própria respiração.

Acredito que a principal dúvida de todos nós, ao nos depararmos com o boato do metanol no vinho, é saber quanto dessa substância existe na nossa garrafa diária, seja ela de Isabel ou de qualquer outra variedade vínica. Afinal, a ingestão de 10 ml de metanol é suficiente para destruir o nervo ótico e causar cegueira permanente. Já 30 ml pode ser potencialmente fatal. Os efeitos tóxicos começam imediatamente após a ingestão, com sintomas que se parecem com os do álcool mas logo evoluem para um quadro muito grave.

De modo geral, todos os vinhos contêm metanol, em doses que variam em média de 50 a 300 mg/l. No entanto, vários estudos apontam que vinhos feitos de Vitis labrusca realmente possuem mais metanol em sua composição que os vinhos feitos com Vitis vinifera. Este aqui, por exemplo, identificou uma média de 133 mg/l em Isabel/Bordô/Concord contra 57 mg/l em Cabernet Sauvignon. Este outro já mostra 394 mg/l nos Vitis labrusca e 147 mg/l em Malbec/Muscat, sendo que o limite da legislação brasileira é de 350 mg/l.

O principal motivo para essa diferença é uma substância chamada pectina, um polissacarídeo existente nas paredes de plantas terrestres e em seus frutos, que existe em maior quantidade nas videiras da espécie Vitis labrusca. Como o metanol presente no vinho é gerado pela hidrólise dos grupos metoxílicos da pectina da uva ao longo da fermentação, devemos sim esperar um teor de metanol um pouco mais alto nos vinhos feitos com uvas americanas.

Além da espécie de uva, há ainda dois outros fatores que contribuem para aumentar o teor de metanol nos vinhos. Um deles é o uso industrial da enzima péctica ou pectinase, produto regularmente empregado pelas vinícolas para melhorar a cor do suco, promover uma melhor extração de taninos e facilitar o processo de filtração final. Outro fator que pode provocar índices mais altos de metanol é o tempo de maceração do processo, uma vez que a pectina permanece por mais tempo no mosto quanto maior for o contato do suco com as cascas. Esta última observação explica, por exemplo, porque o teor de metanol é sempre mais alto nos vinhos tintos do que nos brancos.

Mas enfim, o metanol que está dentro da minha garrafa de vinho feito com uva Isabel é perigoso ou não?

Vamos exercitar um pouco de matemática para entender o que significam as concentrações de metanol expostas mais acima.

Sabe-se que a densidade do metanol é de 792 kg/m3, ou 792 g/l (muito próxima à do álcool comum). O limiar máximo considerado seguro para a ingestão de metanol é 2,5 ml (2 g), a intoxicação aguda ocorre com 10 ml (8 g) e uma potencial fatalidade pode acometer a pessoa que consumir 30 ml (24 g).

Sabendo que o teor limite da legislação brasileira para o metanol é de 350 mg/l, a parcela desta substância presente numa garrafa de vinho contendo 350 mg/l é de 0,045%. Considerando esse percentual, conclui-se que o volume admissível de metanol numa garrafa de 750 ml é de 0,3375 ml.

Portanto, ao consumir um vinho com 350 mg/l de metanol (0,045%):
• é perfeitamente seguro beber até 5,9 garrafas;
• para se intoxicar gravemente com metanol seria preciso beber 29,6 garrafas.

Eis uma memoriazinha de cálculo básica para os números acima:


Utilizando os mesmos tipos de cálculo, podemos continuar a avaliar os limites de metanol em diversos outros mercados.

Considerando o limite da União Europeia, por exemplo, que é de 250 mg/l para brancos e rosés e 400 mg/l (0,051%) para tintos, temos o seguinte cenário no caso dos tintos:
• é perfeitamente seguro beber até 5,2 garrafas;
• para se intoxicar gravemente com metanol seria preciso beber 26,1 garrafas.

Já nos Estados Unidos a FDA (Food and Drug Administration) diz que um teor de 0,1% de metanol no vinho é seguro, e que acima disso ele é considerado adulterado. Para 0,1%, o volume de metanol numa garrafa de 750 ml é de 0,75 ml.

Portanto, ao consumir um vinho com 0,1% de teor de metanol (ou 792 mg/l):
• é perfeitamente seguro beber até 2,6 garrafas;
• para se intoxicar gravemente com metanol seria preciso beber 13,3 garrafas.

Observa-se, portanto, que mesmo com valores de metanol um pouco acima dos limites estabelecidos seria impossível se intoxicar bebendo vinho, independente da variedade de uva utilizada para fabricá-lo. Quem em sã consciência bebe 2 garrafas e meia numa refeição ou numa sessão de degustação?

Extrapolando a conta para o máximo admissível de metanol que pode haver numa única garrafa, ou seja, uma quantidade de 2,5 g ou 2 ml, chegamos aos valores de corte de 2.110 mg/l ou 0,26% em volume. Somente para se ter uma ideia, no escândalo dos vinhos italianos envenenados a tal garrafa com 5,7% de metanol continha cerca de 42 ml da substância, quantidade 21 vezes maior que o limite admissível de ingestão segura!  Uma única taça desse vinho batizado é capaz de destruir o sistema nervoso de um ser humano e deixá-lo cego, que dirá a garrafa inteira.


O que é possível concluir de tudo isso?

Ainda que alguns "iluminados" insistam em preservar esse mito infundado, agora posso dizer com toda a certeza que ninguém vai passar mal por beber vinhos feitos com uvas Isabel. Para pôr um ponto final ao assunto, confiram aqui um estudo exclusivo feito somente sobre os vinhos de Isabel.

O processo de fermentação de uvas para a produção de vinho é feito ao redor de todo o mundo, inclusive por pessoas e famílias comuns em seus próprios quintais. Independente da qualidade dos vinhos resultantes de processos caseiros, podemos ficar seguros pois nenhum deles será capaz de matar devido ao teor de metanol resultante. A única coisa com a qual devemos nos preocupar, no caso de produção caseira, é com o processo de destilação, algo que exige muito mais cuidado e pode sim resultar em bebidas com um perigoso percentual de metanol.

E se algum dos nobres leitores encontrar uma garrafa do autêntico Fragolino e ainda estiver com medo do metanol assassino diluído dentro dela, pode mandar pra mim que terei o maior prazer em livrá-lo do fardo.

Além dos links colocados acima, os artigos abaixo também contribuíram como fontes de pesquisa para este texto:
http://m.wine-searcher.com/grape-834-isabella
http://en.wikipedia.org/wiki/Pectin
http://winemakersacademy.com/pectic-enzymes-wine
http://revistaadega.uol.com.br/artigo/as-enzimas_6553.html
http://www.oenoblog.info/pt/2009/01/la-filtrabilidad-de-los-vinos
http://en.wikipedia.org/wiki/Methanol#Human_metabolite
http://homedistiller.org/intro/methanol/methanol
http://www.expo2015.org/magazine/en/economy/methanol-wine---we-learned-our-lesson-.html
http://www.thedrinksbusiness.com/2011/08/top-10-wine-scandals/7
http://content.time.com/time/magazine/article/0,9171,961046,00.html
http://www.italybeyondtheobvious.com/the-fragolino-controversy
http://www.science20.com/small_world/exploration_into_the_mystery_behind_fragolino
http://forums.egullet.org/topic/142525-fragolino-the-illegal-wine-venezia-venice-experiences-not-the-spark
http://modernfarmer.com/2013/10/best-wine-cant-buy-fragolino
http://viewitaly.blogspot.com.br/2006/08/tgi-fragolino-free-wine.html
http://www.shroomery.org/forums/showflat.php/Number/13869845
http://www.homebrewtalk.com/showthread.php?t=364196
http://www.homebrewtalk.com/showthread.php?t=57733