terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Mistérios acerca da Pinot Noir

De todas as castas de uvas viníferas utilizadas para a produção de vinhos calmos ao redor do mundo, poucas são tão difíceis de serem cultivadas e apreciadas como a Pinot Noir. De manejo sabidamente difícil e mais custoso que as outras castas tintas, esta singela uva de tamanho pequeno e pele frágil é frequentemente mencionada para os neófitos como sendo fonte segura de vinhos de corpo leve, de baixo teor tânico e "fáceis de beber" (não gosto desta expressão estúpida, por sinal).

O problema é que depois de algumas garrafas fica muito claro que a verdade não é bem essa. A probabilidade, aliás, é que muita gente se depare com garrafas de Pinot Noir que vão totalmente contra as características citadas acima, e com tal frequência que algumas pessoas até desanimam de tentar compreender a pobre Pinot.


Alguns dias atrás me peguei fazendo a seguinte pergunta: por que é tão difícil encontrar vinhos que utilizam a Pinot Noir em blends?

Estou obviamente excluindo a categoria dos espumantes, na qual a Pinot é parceira de gala juntamente com a Chardonnay e a Pinot Meunier. O fato é que jamais cheguei a ver um assemblage não-espumante, seja do velho ou do novo mundo, que tenha em sua composição um pouco que seja de Pinot Noir acompanhando Cabernet Sauvignon, Merlot, Syrah, Grenache e afins. Desafio qualquer pessoa a encontrar tal blend, e se encontrar peço encarecidamente que me encaminhe nos comentários alguma referência de onde eu possa comprar a garrafa.

Pois bem, depois de pesquisar um pouco cheguei a algumas informações que acho interessante registrar, para fixação e futura referência.

A principal resposta para o mistério de porque a Pinot Noir é sempre engarrafada como um vinho varietal é também a mais óbvia. Décadas de experiência nos mais diferentes métodos de vinificação levaram à conclusão de que combinar a Pinot com qualquer outra casta é algo que simplesmente não funciona. Existe a ideia de que o cultivo desta uva é algo que demanda equilíbrio ímpar e um senso mais forte de lugar/terroir, e que acrescentá-la a um corte extingue ou transforma tal objetivo em algo impossível.

Nooooooooooooo...

O fato da Pinot Noir ser uma casta extremamente sensível é outra característica a ser levada em consideração. O simples desejo do viticultor de obter um bom varietal desta uva passa por etapas críticas que cepas mais robustas suportam com muito mais facilidade. O teor de carvalho a ser usado na vinificação da Pinot é provavelmente o aspecto mais polêmico, assim como o são a duração da fermentação e a opção de um período de pré-maceração. Temperaturas mais frias conduzem a menos corpo e aromas mais frescos, enquanto fermentações mais quentes e longas resultam em vinhos mais vigorosos e de maior estrutura tânica. Imaginem ter que lidar com tantas variáveis para depois não obter os resultados desejados ao se fazer a mistura do blend. É por isso que o tradicional corte bordalês se tornou uma regra de vinificação praticamente infalível, e também porque é muito mais fácil para qualquer produtor errar a mão num Pinot Noir do que num Cabernet Sauvignon ou num Merlot.

Devo confessar que minhas experiências com a Pinot Noir se dividem entre o antes e o depois de meu renascimento como enófilo. Lembro de ter provado e gostado de várias garrafas de Pinot Noir em minha rotina pregressa, mas desde que me lancei neste mundo enófilo ainda não encontrei aquela Pinot Noir que marcasse meu paladar de um modo que eu possa classificar como acima da média. Teria eu simplesmente tido sorte em meu passado leigo ou minha memória me prega peças? Neste ano que passou, ou os Pinot Noir que tomamos eram somente corretos e sem atrativos olfativos/gustativos de nota ou eles simplesmente se mostravam desequilibrados, seja num aspecto demasiadamente aguado (como o francês Fraçois Labet Ile de la Beauté VdP, figurinha fácil nas cartas de vinho dos restaurantes da cidade) ou excessivamente acarvalhado (o norteamericano Bridlewood Monterey County, por exemplo).

Bridlewood Monterey County Pinot Noir 2012

Tenho perfeita ciência de que o berço original da Pinot Noir é a super-hiper-mega badalada região francesa da Borgonha, ou Bourgogne no idioma do finado diretor underground Jean Rollin. A regra dita que todos os vinhos tintos da Borgonha são feitos com 100% de Pinot Noir, e sendo assim é natural concluir que os melhores Pinots vêm de lá. O grande problema é que os melhores vinhos da Borgonha têm preços completamente fora da casinha - são aqueles que se enquadram nas famosas appellations que nem mesmo chegam a trazer o termo Bourgogne no rótulo. E se há um Bourgogne no rótulo devemos ter em mente que apesar dos preços mais acessíveis estamos diante de um engarrafamento regional, desprovido de senso de terroir e muito provavelmente produzido a partir de colheitas de vários produtores. Enfim, um vinho de qualidade inferior.

Se o vinho francês é muito caro ou mesmo complicado de se entender, o novo mundo se mostra um pouco mais receptivo para quem deseja se aprofundar no universo da Pinot Noir. Basta focar nossos esforços em exemplares provenientes de regiões demarcadas, que costumam aparecer nos rótulos de AVAs, DOs ou DOCs acompanhadas de indicações de terroir ou com uma designação de Single Vineyard. A probabilidade de ficar na mão é maior em apelações genéricas como California ou Valle Central, muito embora isso não seja regra (como no caso do Bridlewood mencionado acima). Mas vamos admitir, é muito mais fácil se deparar com um Sauvignon Blanc de qualidade do que com um Pinot Noir de igual calibre em denominações genéricas.

Não posso esquecer também dos Spätburgunder alemães (é desse jeito que a Pinot Noir é chamada na terra de Werner Herzog), que ouvi dizer por aí que são muito bons. Nunca provei um, mas qualquer dia vai.


Para finalizar, um fato interessante que descobri é que a Borgonha não é feita somente de Pinot Noir. Sim, claro, a região compreende também a área de Beaujolais e seus ainda mais polêmicos vinhos feitos com a uva Gamay. Entretanto, apesar dos tintos da Borgonha serem todos elaborados a partir de Pinot Noir, a verdade é que as vinícolas cultivam também outras variedades que podem entrar na composição da AOC Bourgogne Passe-tout-grains (que-passem-todas-as-uvas). As duas cepas principais, Pinot Noir e Gamay, podem ser misturadas a Chardonnay, Pinot Blanc e Pinot Gris provenientes dos mesmos vinhedos que produzem os rótulos de maior renome. Trata-se porém de um blend teoricamente leve, brilhante e feito para consumo rápido.

Não faço a mínima ideia de quanto custa um Bourgogne Passe-tout-grains, mas vou ficar de olho entre uma e outra garimpada em busca da melhor Pinot Noir que puder degustar. Atualmente minha busca pessoal é por um Pinot com perfil mais frutado, sem passagem por carvalho ou com muito pouca madeira, que seja quase imperceptível e não influencie o paladar. É uma busca que tem a probabilidade de me levar a exemplares mais aguados do que desequilibrados, mas eu assumo o risco. Além disso, aparentemente existem experiências de corte entre Pinot Noir e Syrah feitas na Califórnia, na Suíça, na Nova Zelândia e na Austrália. Vou ficar de olhos bem abertos!

Referências de pesquisa para este texto:
http://www.wine-searcher.com/grape-384-pinot-noir
http://vinepair.com/wine-blog/myth-busted-pinot-noir-is-not-the-only-grape-that-is-legal-for-making-red-wine-in-burgundy
http://www.winespectatorweekly.com/drvinny/show/id/5036
http://www.steveheimoff.com/index.php/2012/10/24/pinot-noir-to-blend-or-vineyard-designate
http://www.wine-searcher.com/grape-1921-pinot-noir-syrah

terça-feira, 22 de dezembro de 2015

ClubeW Classic - Uma Retrospectiva para 2015

Logo que comecei a me interessar mais pelo mundo dos vinhos uma das primeiras coisas que fiz foi aceitar o convite do Anderson Mendes para entrar para o clube de vinhos da wine.com.br. E eu entrei logo para a categoria Classic, o nível intermediário que foi, originalmente, a linha com a qual a empresa se inseriu no mercado online de vinhos.

Como aderi ao clube exatamente em Janeiro deste ano, vou recapitular agora todas as seleções de 2015. Compartilho impressões marcadas pelo tempo e pela vivência que foi sendo construída aos poucos com muita pesquisa, leitura e, claro, degustações.

Janeiro - Mommessin (França)
  → Fleurie Réserve 2011
  → Beaujolais-Villages Réserve 2013

Com um paladar ainda muito pouco familiarizado com vinhos, não sei o que dizer exatamente desta primeira experiência com a Gamay. Não tenho muitas coisas a declarar dos vinhos em si, distribuídos pelo que parece ser um negociante de vulto da região de Beaujolais, mas ambas as garrafas foram provadas em ambiente descontraído. Isso certamente ajudou na apreciação.

Mommessin, Fleurie Réserve 2011

Fevereiro -  Neethlingshof (África do Sul)
  → Neethlingshof, Chenin Blanc, WO Stellenbosch 2014
  → Neethlingshof Estate, Pinotage, WO Stellenbosch 2014

Pode-se dizer que ambos os vinhos são bastante representativos de suas respectivas castas. O Pinotage nos chamou muito a atenção pela presença característica de fumaça e defumado, e o Chenin Blanc mostrou que pode muito bem se igualar ou superar as uvas brancas mais famosas com seu corpo leve e os amoras minerais, cítricos e de grama molhada.

Neethlingshof, Chenin Blanc, WO Stellenbosch 2014

Março - Barahonda Bodegas (Espanha)
  → Barahonda Sin-Madera, Monastrell, DO Yecla 2011
  → Barahonda Barrica, Monastrel-Syrah, DO Yecla 2011

Ainda não provamos o Barrica, mas o Sin-Madera foi devidamente apreciado numa rodada de entradas de um restaurante do qual gostamos muito. Esta foi também nossa primeira experiência com a Monastrell/Mourvédre, sendo que o que mais chamou a atenção foi a coloração pálida, bastante brilhante do vinho. Agradou no paladar, mas não conseguimos identificar muitos aromas. O Barahonda Sin-Madera foi também a primeira postagem que arrisquei a fazer na minha então recém-criada conta de Instagram.

Barahonda Sin-Madera, Monastrell, DO Yecla 2011

Abril - Fantinel (Itália)
  → Fantinel Selezione di Famiglia Cabernet Sauvignon, Friuli Grave DOC 2012
  → Fantinel Selezione di Famiglia Merlot, Friuli Grave DOC 2012

Meu conhecimento dos vinhos italianos ainda era bastante incipiente quando decidimos degustar os exemplares varietais da Fantinel, feitos com duas das uvas mais tradicionais do velho mundo. Meu favorito foi o Cabernet Sauvignon, que ousei harmonizar com churrasco contra o desejo de muita gente presente a este evento caseiro. Tudo o que posso dizer é que quem não provou não sabe o que perdeu, pois a combinação funcionou muito bem. O Merlot também agradou porém em menor escala, ao ser degustado com uma pizza em noite fora de casa.

Fantinel Selezione di Famiglia Cabernet Sauvignon, Friuli Grave DOC 2012

Maio - Viña Las Perdices (Argentina)
  → Partridge Gran Reserva Bonarda, Mendoza 2012
  → Partridge Gran Reserva Malbec, Mendoza 2012

Posso seguramente dizer que o Bonarda foi uma das primeiras grandes experiências que tive com vinho. Depois de descansar na taça após os primeiros goles ele "abriu" de maneira fantástica, mostrando-se aveludado de uma forma que minha esposa e eu ainda não tínhamos provado em nenhum vinho até então. Fascinante, para dizer o mínimo. O Malbec também foi bom, mas sem a pegada do Bonarda. Um fato interessante que notei sobre a Las Perdices é que esta se trata de uma vinícola de grande projeção na região de Mendoza, visto que seus vinhos figuram de maneira bastante proeminente nas cartas dos restaurantes mendocinos. Esta aí um indicativo importante de qualidade tanto lá quanto aqui, afinal a linha Partridge foi desenvolvida especialmente para o ClubeW Classic.

Partridge Gran Reserva Bonarda, Mendoza 2012

Junho - Viña Ventisquero (Chile)
  → V9 Gran Reserva Single Vineyard Carmenere, Valle del Maipo 2012
  → V9 Gran Reserva Single Vineyard Cabernet Sauvignon, Valle del Maipo 2012

Dois vinhos de muita qualidade desenvolvidos especialmente para o clube. Ambos levam 90% das castas presentes nos rótulos (o Carmenere tem 10% de Cabernet Sauvignon e vice-versa). O Carmenere em especial se mostrou fantástico: perfumado, aromas de frutas vermelhas e ameixa, medianamente encorpado e aveludado, classudo do início ao fim. Não é à toa que a Ventisquero é uma das vinícolas chilenas das quais mais gostamos!

V9 Gran Reserva Single Vineyard Cabernet Sauvignon, Valle del Maipo 2012

Julho - Edna Valley e Bridlewood Winery (Estados Unidos)
  → Edna Valley Pinot Noir, Central Coast 2013
  → Bridlewood Cabernet Sauvignon, Paso Robles 2012

Abrimos o Pinot Noir numa noite de Sábado para acompanhar uma conversa de família. O vinho atendeu as expectivas despretensiosamente, ainda que não mostrasse nenhum diferencial a mais. A Pinot Noir é provavelmente a casta mais difícil de se acertar no processo de vinificação, algo que tenho descobrido aos poucos. Quanto ao Cabernet Sauvignon, por enquanto segue descansando na adega.

Edna Valley Pinot Noir, Central Coast 2013

Agosto - Gérard Bertrand (França)
  → Gérard Bertrand - Cross Series Gran Terroir AOP Tautavel 2013
  → Gérard Bertrand - Cross Series Gran Terroir La Clape 2013

Provei apenas o La Clape até agora. Ainda não tenho muita afinidade com vinhos franceses, mas este se mostrou encorpado, com taninos presentes e aromas de frutas maduras. A julgar pela boa presença de Gérard Bertrand nas listas de recomendações da revista Decanter, está aí uma boa dica de bom produtor para começar a se familiarizar com os vinhos da região de Languedoc-Roussillon.

Gérard Bertrand - Cross Series Gran Terroir La Clape 2013

Setembro - Herdade do Esporão (Portugal)
  → Duas Castas, Alentejo 2014
  → Quatro Castas, Alentejo 2013

O primeiro a ser apreciado foi o Duas Castas (60% Arinto e 40% Gouveio), que harmonizou de maneira magnânima com um bacalhau ao forno preparado por minha esposa. Aromático e elegante, é uma boa variação dos Vinhos Verdes que costumam preencher nossa rotina quando se trata de brancos portugueses. O Quatro Castas (Touriga Franca, Syrah, Cabernet Sauvignon e Alicante Bouschet, em partes iguais) foi provado e aprovado recentemente, inclusive caindo nas graças de visitas que não têm o costume de tomar vinho. Foi nesta oportunidade que participamos também do primeiro "encontro" da confraria virtual da comunidade Viva o Vinho (website, Facebook, Instagram).

Duas Castas, Alentejo 2014

Outubro - Allesverloren (África do Sul)
  → Allesverloren Tinta "Barocca", WO Swartland 2014
  → Allesverloren Touriga Nacional, WO Swartland 2014

Nem em Portugal parece ser tão fácil encontrar varietais das uvas autóctones do país, como as que chegaram nessa seleção. Dos dois o que já provamos foi o Tinta Barroca, marcado por paladar medianamente encorpado e olfato de frutas compotadas. Não brilhou, mas desceu bem ao acompanhar massa ao molho vermelho.

Allesverloren Tinta "Barocca", WO Swartland 2014

Novembro - Barahonda Bodegas (Espanha)
  → Tranco, DO Yecla 2011
  → Campo Arriba, DO Yecla 2012

O sucesso da seleção de Março da Barahonda Bodegas foi o que aparentemente levou a Wine a confiar mais uma vez na vinícola. Os dois vinhos de Novembro voltam a ser baseados principalmente na Mourvédre, recebendo parcelas menores de cepas como Cabernet Sauvignon e Alicante Bouschet. As garrafas estão descansando, mas posso seguramente dizer que a expectativa é boa para quando formos degustá-las.


Dezembro - Santa Rita (Chile)
  → Medalla Real Gold Medal Limited Edition Cabernet Sauvignon, Valle del Maipo 2011
  → Medalla Real 1987 Retro Edition Carmenere, Valle de Colchagua 2012

Vinícola bastante conhecida de todos os brasileiros com um mínimo de conhecimento enófilo, a Santa Rita apresentou na última seleção do ano dois rótulos preparados especialmente para o clube, tal qual o fizeram a Las Perdices em Maio e a Ventisquero em Agosto. Estando inseridos dentro da linha Medalla Real Gran Reserva, ambos envelhecem por cerca de um ano em barricas de carvalho. Minha apreciação pessoal pela Carmenere já me deixa com água na boca, então agora é só esperar o momento para abrir as garrafas.



Nas últimas semanas estive pensando seriamente em me desligar no ClubeW. Nada contra a qualidade dos vinhos, é que eu queria focar mais em minhas próprias escolhas para abastecer a adega. Aí minha esposa me convenceu a continuar, e fiquei matutando se deveria debandar para o ClubeW One.

Então peguei-me pensando em como a Wine pode preencher algumas de minhas necessidades de aprendizado... A Carmenere tem ganhado bastante espaço nos tintos, muito em parte graças a um rótulo que veio pelo clube. Eu absolutamente não me sinto à vontade para comprar vinhos franceses (e em menor grau portugueses, com exceção de Vinhos Verdes), então os que vieram pela Wine foram muito bem-vindos.

Enfim, acho que vou ficar mais um tempo no ClubeW Classic. A todos os que, como eu, são participantes de algum dos clubes da wine.com.br, vai aqui um sincero brinde a todas as seleções que estão por vir!

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Essas tais propriedades organolépticas e seus desdobramentos

Em meio a tantas informações e experiências às quais nós enófilos estamos sujeitos, uma das coisas que mais me intriga é a avaliação sensorial de vinhos, principalmente no que diz respeito à dita imprensa especializada.

Avaliar sensorialmente uma garrafa que acaba de ser aberta, em teoria, não deveria ser algo tão complicado, mas é. O horror para um enófilo iniciante é ser desafiado a descrever o vinho que está tomando.

Sim, claro, quanto mais escuro o tinto maior a probabilidade dele ser encorpado. O que se espera dos aromas são sensações que permeiam o nariz como perfumes de pomar em pleno outono. Álcool rascante denota desequilíbrio, veludo na boca é como a descoberta de uma pedra preciosa. Escrever é bem mais fácil que declamar, mas mesmo assim sabemos que há muito mais que isso e que existe uma infinidade de fatores que influenciam nossa percepção sensorial.


Muito se ouve e se lê acerca das propriedades “organolépticas” de um vinho, por exemplo. Que diabos seriam essas tais propriedades organolépticas? A definição clássica diz que trata-se das características dos materiais que são capazes de imprimir sensações aos órgãos dos sentidos, ou seja: visão, olfato, paladar, tato e audição. Logo que comecei a ler sobre vinhos me deparei com o termo, mas admito que seu real significado demorou para se solidificar em minha mente.

Considerando que meu olfato e meu paladar são diferentes dos seus, leitor, e dos da minha avó ou do meu agente de viagens, é factível concluir que nem sempre nossas percepções serão as mesmas. O que você percebe como sendo defumado pode ser interpretado como tostado ou enfumaçado por outra pessoa. Cereja, amora, groselha, mirtilo. Abacaxi, maracujá, toranja, limão. O que de fato é capaz de diferenciar um aroma do outro?

O que está dentro de nossas taças, afinal, é nada mais que o resultado da fermentação de uvas viníferas (em sua maior parte, pelo menos), pois é óbvio que os viticultores não adicionam aromatizantes ao néctar que tanto amamos. Seria um escândalo, não? Portanto as sensações que sentimos vêm dos milhares de compostos químicos presentes no vinho, que por associação com nossa memória olfativa nos fazem lembrar de aromas ou gostos familiares.


A primeira vez em que ouvi uma explicação interessante sobre “organoléptico” e “memória olfativa” foi dada pela guia da visita que fizemos à Concha y Toro em Santiago, e por essa explicação sempre serei grato à moça: a sensação olfativa percebida numa taça de vinho é algo que varia de pessoa para pessoa, exatamente devido aos fatores organolépticos envolvidos. E se os seus sentidos estão alterados, eles com certeza irão alterar as percepções organolépticas dos vinhos que tomamos.

Da afirmação acima é possível derivar algumas outras, como por exemplo:
  1. O óbvio: quanto mais rica for sua memória olfativa, mais interessante e rica será a sua avaliação sensorial.

  2. Tudo o que você come ou bebe antes de beber uma taça de vinho influencia em sua percepção. Tudo. Cafezinho da tarde, escovar os dentes, frituras do lanche, comidas variadas. E lavar a boca e a garganta com água nem sempre é suficiente para “zerar” o paladar. O mesmo vale para as condições de saúde (resfriado, garganta coçando, azia de ontem, afta, dor de cabeça), que podem comprometer ou até pôr a perder completamente a experiência de degustação.

  3. O vinho que está maravilhoso hoje pode passar despercebido amanhã. A harmonização que funcionou maravilhosamente no almoço do mês passado pode não ser tão bem-sucedida no próximo fim de semana, mesmo que o vinho e o prato sejam os mesmos.

Um delicioso teste para nossas percepções organolépticas!

Observem que eu nem cheguei a entrar nos meandros de temperatura, formato da taça ou arejamento do vinho para amaciamento do álcool. Desconsiderando estes e outros fatores que indiretamente afetam a percepção organoléptica, até que ponto é possível confiar na avaliação de uma revista dita especializada?

Quantas foram as vezes em que nós, ansiosos para aprender mais sobre o tema, nos deparamos com percepções absolutamente distintas daqueles floreios de múltiplas linhas escritos por alguém com suposto conhecimento de causa? Como diferenciar a promoção sem-vergonha de um vinho sem muitos atrativos de uma avaliação genuína? Como separar o que é pura encheção de linguiça da informação que realmente importa? Será que o enólogo ou o Master of Wine estavam num dia bom quando fizeram a degustação? Olhem bem, se seu ganha-pão é avaliar vinhos é bem provável que existam momentos em que você não estará em plenas condições de exercer seu ofício, mas terá que fazê-lo pelos mais variados motivos. E nesse momento o enojornalismo parece ensaiar um encontro com a astrologia, porque essa é a impressão que tenho quando leio múltiplas avaliações de vinhos num curto espaço de tempo.

Mais uma deliciosa prova para nossas memórias olfativas!

Esta postagem já está comprida demais e divagar muito além disso seria como abrir uma Caixa de Pandora, então paro por aqui e faço algumas observações finais.

  • Já provei muitos vinhos sem estar em plenas condições para uma boa avaliação sensorial, seja por estar gripado, ter bebido café, ter comido paçoca pouco antes do ato ou estar com o paladar simplesmente saturado. Aos poucos passei a ter mais consciência disso, e se por algum motivo ainda sou levado a incorrer no mesmo “erro” (nunca se sabe quando a oportunidade vai surgir, né?), imediatamente reduzo minha expectativa sobre a garrafa que está prestes a ser aberta.

  • Regra: considerando que minhas condições organolépticas estejam em ordem, não tenho medo de arriscar vinhos desconhecidos ou de provar harmonizações inusitadas. É exatamente nestes momentos em que acredito estar verdadeiramente educando meu paladar.

  • Pontuações numéricas de vinhos não me interessam, avaliação descritiva é o que realmente importa. 97 points by Robert Parker? Dada a subjetividade e a variabilidade envolvida na degustação de um vinho, a única coisa sensata a se dizer sobre esse sistema de 100 pontos é que ele é estúpido. Não passa de balela sem-vergonha de marketing. O sistema de 20 pontos talvez seja menos estúpido, porém nunca superará uma boa e sincera descrição.

  • Se eu tiver que optar por um estilo de avaliação, acho mais confiáveis aquelas do tipo que a revista Decanter faz em seu Panel Tasting, onde a nota final é a média da avaliação cega de três pessoas teoricamente gabaritadas no tema em questão, acompanhadas das notas de degustação dos três profissionais no caso dos melhores vinhos. Isso reduz a margem de erro por inaptidão ou por conflito de interesses.

  • Beber por beber jamais. Contexto é tudo. Uma ou mais companhias, uma experiência, um evento, um desafio. Isso agrega muito e é capaz de transformar mesmo as garrafas menos memoráveis em gratas lembranças. É como alguém já disse um dia... There are no great wines, just great bottles.


Vamos todos exercitar nossos sentidos!

Saúde!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Liver, fava beans and a nice Chianti

Sendo cinéfilo inveterado desde que me entendo por gente, uma das memórias mais antigas que tenho relacionada a filmes e vinhos é uma frase infame dita pelo personagem Hannibal Lecter, interpretado por Anthony Hopkins no filme O Silêncio dos Inocentes.

A passagem é dita numa das emblemáticas interações entre o famigerado canibal e a obstinada agente do FBI feita por Jodie Foster:


I ate his liver with some fava beans and a nice Chianti.

Tradução:

Eu comi o fígado dele com favas e um bom Chianti.

A frase acima é marcante também pelo gesto de provocação (ou seria deboche?) que Hopkins faz após entregar sua fala, como se estivesse sugando algo através dos dentes.

Vejam ou relembrem abaixo:


Depois de tanto tempo sem assistir ao filme pouco importa o contexto em que a passagem acima se encaixa no roteiro. Mas é por causa dessa frase em particular que eu nunca vou conseguir desfazer a associação do famoso vinho italiano da Toscana com fígado e favas. Simplesmente não dá, é só falar ou pensar em Chianti que a imagem e a fala de Hopkins me vêm à mente...

Talvez algum dia eu tenha a chance de experimentar a inusitada harmonização, obviamente trocando fígado humano por fígado bovino!