Há quase um ano atrás peguei-me pensando sobre um dilema que vivenciei na pele, enquanto minha esposa e eu passávamos alguns dias de férias no Chile e na Argentina. E tudo começou quando eu disse a ela que uma das minhas intenções na viagem era provar um autêntico vinho brasileiro num restaurante de Santiago.
Podem apostar que quando o assunto é comer nós somos extremamente dedicados. Conhecer restaurantes é uma das principais diversões durante nossas viagens, e como era de se esperar tivemos a chance de visitar vários durante nossa curta estadia em Santiago e Mendoza. Infelizmente, em nenhum momento naqueles dias de temperatura relativamente amena me foi possível realizar o desejo de tomar um vinho brasileiro em terra estrangeira de idioma tão parecido com o nosso e cotidiano idem.
Ai de mim, que inocente!
Típica carta de vinhos de um restaurante de Santiago, de Agosto de 2015
O fato, caros colegas, é que não encontrei um único rótulo estrangeiro que fosse em qualquer carta de vinhos dos restaurantes que visitamos. Observem que não me refiro somente aos brasileiros, e sim a vinhos de qualquer outro país. Francês, italiano, estadunidense, português, espanhol. Nada. Quando no Chile, nada argentino. E quando na Argentina, nada chileno. “Chilenos não sabem fazer vinho!”, bradou o senhor que nos acolheu em sua pousada em Mendoza. Aí tive uma ideia de quanto a rivalidade entre argentinos e chilenos é mais acirrada que a rivalidade entre argentinos e brasileiros.
Nota: as pouquíssimas exceções à observação acima apareciam às vezes na seção de espumantes, que na época não faziam parte de nossas intenções enófilas.
A ausência de vinhos calmos de fora do país me deixou absolutamente perplexo. E não foi somente em restaurantes que achei isso estranho. Ao entrar num dos supermercados da rede Líder em Santiago, por exemplo, a mesma busca se revelou infrutífera. Só havia vinhos chilenos! Dias depois questionei alguém numa vinícola da Argentina sobre o fato, ao qual a pessoa respondeu que vinhos de outros países só poderiam ser encontrados em lojas especializadas. Ou seja, em supermercados e restaurantes argentinos e chilenos as pessoas estão limitadas a consumir somente produtos locais.
Enfim, não pude degustar vinho brasileiro nem em Santiago e nem em Mendoza. E de lá para cá ponderei e pesquisei um pouco sobre a questão do protecionismo. Sendo as produções vitivinícolas chilena e argentina atividades de grande vulto comercial, soa compreensível que eles queiram de alguma forma restringir a presença de vinhos estrangeiros por lá. Posso dizer que compreendo, mas ao mesmo tempo afirmo que eu seria um enófilo um pouco menos feliz se tivesse que viver nesses países.
Caros colegas, eu aprecio a variedade e sua franca disponibilidade, e acredito que ela é um dos aspectos mais fascinantes desse universo que tanto amamos. O protecionismo pode existir, mas não de forma exacerbada ou equivocada. Dois episódios recentes trouxeram novamente à tona a questão do protecionismo vitivinícola, e como ela pode ser extrema.
No primeiro deles, há pouco mais de uma semana, produtores do sul da França ameaçaram boicotar e bloquear a passagem do bacaníssimo evento ciclístico Tour de France na região, como protesto ao fato dos organizadores terem selecionado como patrocinadora do evento a vinícola chilena Cono Sur e sua linha de vinhos Bicicleta. O imbróglio ainda está de pé, já que o organizador não se manifestou a respeito e os produtores de Languedoc-Roussillon continuam exigindo a retirada do patrocínio ou a adição de regalias a favor das vinícolas locais.
O segundo episódio aconteceu ontem na mesma região, somente a alguns quilômetros perto da fronteira com a Espanha. Produtores franceses enfurecidos sequestraram cinco caminhões carregados de vinho espanhol e os forçaram a despejar o líquido ali mesmo no asfalto, como protesto contra a invasão de vinhos estrangeiros e uma situação de competição teoricamente desleal, inclusive acusando os intrusos de estarem engarrafando o vinho como se fosse francês e comercializando-o em condições não condizentes com sua origem (como se vinhos de mesa recebessem status de vinho fino, por exemplo). Aparentemente, sete milhões de litros de vinho foram para o ralo asfáltico.
Viticultores em fúria observam enquanto o vinho estrangeiro se esvai
(Foto por Raymond Roif/AFP/Getty)
Ao pesquisar sobre o assunto, descobri que sempre existiu um histórico de confronto entre produtores de vinho na região sul da França. Mas mesmo se as acusações do segundo caso acima tiverem algum fundamento, o que fizeram com os caminhões espanhóis é crime. Os caras foram longe demais. Além disso, se o vinho for mesmo jug wine como algumas fontes apontaram, como ele poderia competir com os preciosos e superestimados rótulos das AOCs francesas? No caso da Cono Sur é realmente uma pena, visto que a linha Bicicleta tem tudo a ver com o evento, além de ser um excelente rótulo de entrada (seu Cabernet Sauvignon foi um dos melhores que já provei até hoje).
Fontes de informação sobre a importação de vinhos aqui no Brasil são abundantes, mas não há muitos dados sobre exportação. As poucas fontes que encontrei apontam para países como Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Holanda, Bélgica e China como sendo os maiores importadores de vinhos brasileiros (1, 2, 3, 4, 5). E do mesmo jeito que nossos vinhos vão para lá, os de lá têm passe livre para vir para cá – ao invés do que acontece com países protecionistas como Chile, Argentina e França, todos fontes de muita alegria para nós porém extremamente chatos com os “penetras”. Também tenho fortes suspeitas que o mesmo ocorra com Portugal, Espanha e Itália.
Por enquanto, tudo o que me resta é ficar feliz por ter acesso a tanta diversidade vinícola num país riquíssimo, que infelizmente ainda está longe de encontrar um verdadeiro rumo político e econômico.
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