Avaliar sensorialmente uma garrafa que acaba de ser aberta, em teoria, não deveria ser algo tão complicado, mas é. O horror para um enófilo iniciante é ser desafiado a descrever o vinho que está tomando.
Sim, claro, quanto mais escuro o tinto maior a probabilidade dele ser encorpado. O que se espera dos aromas são sensações que permeiam o nariz como perfumes de pomar em pleno outono. Álcool rascante denota desequilíbrio, veludo na boca é como a descoberta de uma pedra preciosa. Escrever é bem mais fácil que declamar, mas mesmo assim sabemos que há muito mais que isso e que existe uma infinidade de fatores que influenciam nossa percepção sensorial.
Muito se ouve e se lê acerca das propriedades “organolépticas” de um vinho, por exemplo. Que diabos seriam essas tais propriedades organolépticas? A definição clássica diz que trata-se das características dos materiais que são capazes de imprimir sensações aos órgãos dos sentidos, ou seja: visão, olfato, paladar, tato e audição. Logo que comecei a ler sobre vinhos me deparei com o termo, mas admito que seu real significado demorou para se solidificar em minha mente.
Considerando que meu olfato e meu paladar são diferentes dos seus, leitor, e dos da minha avó ou do meu agente de viagens, é factível concluir que nem sempre nossas percepções serão as mesmas. O que você percebe como sendo defumado pode ser interpretado como tostado ou enfumaçado por outra pessoa. Cereja, amora, groselha, mirtilo. Abacaxi, maracujá, toranja, limão. O que de fato é capaz de diferenciar um aroma do outro?
O que está dentro de nossas taças, afinal, é nada mais que o resultado da fermentação de uvas viníferas (em sua maior parte, pelo menos), pois é óbvio que os viticultores não adicionam aromatizantes ao néctar que tanto amamos. Seria um escândalo, não? Portanto as sensações que sentimos vêm dos milhares de compostos químicos presentes no vinho, que por associação com nossa memória olfativa nos fazem lembrar de aromas ou gostos familiares.
A primeira vez em que ouvi uma explicação interessante sobre “organoléptico” e “memória olfativa” foi dada pela guia da visita que fizemos à Concha y Toro em Santiago, e por essa explicação sempre serei grato à moça: a sensação olfativa percebida numa taça de vinho é algo que varia de pessoa para pessoa, exatamente devido aos fatores organolépticos envolvidos. E se os seus sentidos estão alterados, eles com certeza irão alterar as percepções organolépticas dos vinhos que tomamos.
Da afirmação acima é possível derivar algumas outras, como por exemplo:
- O óbvio: quanto mais rica for sua memória olfativa, mais interessante e rica será a sua avaliação sensorial.
- Tudo o que você come ou bebe antes de beber uma taça de vinho influencia em sua percepção. Tudo. Cafezinho da tarde, escovar os dentes, frituras do lanche, comidas variadas. E lavar a boca e a garganta com água nem sempre é suficiente para “zerar” o paladar. O mesmo vale para as condições de saúde (resfriado, garganta coçando, azia de ontem, afta, dor de cabeça), que podem comprometer ou até pôr a perder completamente a experiência de degustação.
- O vinho que está maravilhoso hoje pode passar despercebido amanhã. A harmonização que funcionou maravilhosamente no almoço do mês passado pode não ser tão bem-sucedida no próximo fim de semana, mesmo que o vinho e o prato sejam os mesmos.
Um delicioso teste para nossas percepções organolépticas!
Observem que eu nem cheguei a entrar nos meandros de temperatura, formato da taça ou arejamento do vinho para amaciamento do álcool. Desconsiderando estes e outros fatores que indiretamente afetam a percepção organoléptica, até que ponto é possível confiar na avaliação de uma revista dita especializada?
Quantas foram as vezes em que nós, ansiosos para aprender mais sobre o tema, nos deparamos com percepções absolutamente distintas daqueles floreios de múltiplas linhas escritos por alguém com suposto conhecimento de causa? Como diferenciar a promoção sem-vergonha de um vinho sem muitos atrativos de uma avaliação genuína? Como separar o que é pura encheção de linguiça da informação que realmente importa? Será que o enólogo ou o Master of Wine estavam num dia bom quando fizeram a degustação? Olhem bem, se seu ganha-pão é avaliar vinhos é bem provável que existam momentos em que você não estará em plenas condições de exercer seu ofício, mas terá que fazê-lo pelos mais variados motivos. E nesse momento o enojornalismo parece ensaiar um encontro com a astrologia, porque essa é a impressão que tenho quando leio múltiplas avaliações de vinhos num curto espaço de tempo.
Mais uma deliciosa prova para nossas memórias olfativas!
Esta postagem já está comprida demais e divagar muito além disso seria como abrir uma Caixa de Pandora, então paro por aqui e faço algumas observações finais.
- Já provei muitos vinhos sem estar em plenas condições para uma boa avaliação sensorial, seja por estar gripado, ter bebido café, ter comido paçoca pouco antes do ato ou estar com o paladar simplesmente saturado. Aos poucos passei a ter mais consciência disso, e se por algum motivo ainda sou levado a incorrer no mesmo “erro” (nunca se sabe quando a oportunidade vai surgir, né?), imediatamente reduzo minha expectativa sobre a garrafa que está prestes a ser aberta.
- Regra: considerando que minhas condições organolépticas estejam em ordem, não tenho medo de arriscar vinhos desconhecidos ou de provar harmonizações inusitadas. É exatamente nestes momentos em que acredito estar verdadeiramente educando meu paladar.
- Pontuações numéricas de vinhos não me interessam, avaliação descritiva é o que realmente importa. 97 points by Robert Parker? Dada a subjetividade e a variabilidade envolvida na degustação de um vinho, a única coisa sensata a se dizer sobre esse sistema de 100 pontos é que ele é estúpido. Não passa de balela sem-vergonha de marketing. O sistema de 20 pontos talvez seja menos estúpido, porém nunca superará uma boa e sincera descrição.
- Se eu tiver que optar por um estilo de avaliação, acho mais confiáveis aquelas do tipo que a revista Decanter faz em seu Panel Tasting, onde a nota final é a média da avaliação cega de três pessoas teoricamente gabaritadas no tema em questão, acompanhadas das notas de degustação dos três profissionais no caso dos melhores vinhos. Isso reduz a margem de erro por inaptidão ou por conflito de interesses.
- Beber por beber jamais. Contexto é tudo. Uma ou mais companhias, uma experiência, um evento, um desafio. Isso agrega muito e é capaz de transformar mesmo as garrafas menos memoráveis em gratas lembranças. É como alguém já disse um dia... There are no great wines, just great bottles.
Vamos todos exercitar nossos sentidos!
Saúde!
Ótimo texto!
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