terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Mistérios acerca da Pinot Noir

De todas as castas de uvas viníferas utilizadas para a produção de vinhos calmos ao redor do mundo, poucas são tão difíceis de serem cultivadas e apreciadas como a Pinot Noir. De manejo sabidamente difícil e mais custoso que as outras castas tintas, esta singela uva de tamanho pequeno e pele frágil é frequentemente mencionada para os neófitos como sendo fonte segura de vinhos de corpo leve, de baixo teor tânico e "fáceis de beber" (não gosto desta expressão estúpida, por sinal).

O problema é que depois de algumas garrafas fica muito claro que a verdade não é bem essa. A probabilidade, aliás, é que muita gente se depare com garrafas de Pinot Noir que vão totalmente contra as características citadas acima, e com tal frequência que algumas pessoas até desanimam de tentar compreender a pobre Pinot.


Alguns dias atrás me peguei fazendo a seguinte pergunta: por que é tão difícil encontrar vinhos que utilizam a Pinot Noir em blends?

Estou obviamente excluindo a categoria dos espumantes, na qual a Pinot é parceira de gala juntamente com a Chardonnay e a Pinot Meunier. O fato é que jamais cheguei a ver um assemblage não-espumante, seja do velho ou do novo mundo, que tenha em sua composição um pouco que seja de Pinot Noir acompanhando Cabernet Sauvignon, Merlot, Syrah, Grenache e afins. Desafio qualquer pessoa a encontrar tal blend, e se encontrar peço encarecidamente que me encaminhe nos comentários alguma referência de onde eu possa comprar a garrafa.

Pois bem, depois de pesquisar um pouco cheguei a algumas informações que acho interessante registrar, para fixação e futura referência.

A principal resposta para o mistério de porque a Pinot Noir é sempre engarrafada como um vinho varietal é também a mais óbvia. Décadas de experiência nos mais diferentes métodos de vinificação levaram à conclusão de que combinar a Pinot com qualquer outra casta é algo que simplesmente não funciona. Existe a ideia de que o cultivo desta uva é algo que demanda equilíbrio ímpar e um senso mais forte de lugar/terroir, e que acrescentá-la a um corte extingue ou transforma tal objetivo em algo impossível.

Nooooooooooooo...

O fato da Pinot Noir ser uma casta extremamente sensível é outra característica a ser levada em consideração. O simples desejo do viticultor de obter um bom varietal desta uva passa por etapas críticas que cepas mais robustas suportam com muito mais facilidade. O teor de carvalho a ser usado na vinificação da Pinot é provavelmente o aspecto mais polêmico, assim como o são a duração da fermentação e a opção de um período de pré-maceração. Temperaturas mais frias conduzem a menos corpo e aromas mais frescos, enquanto fermentações mais quentes e longas resultam em vinhos mais vigorosos e de maior estrutura tânica. Imaginem ter que lidar com tantas variáveis para depois não obter os resultados desejados ao se fazer a mistura do blend. É por isso que o tradicional corte bordalês se tornou uma regra de vinificação praticamente infalível, e também porque é muito mais fácil para qualquer produtor errar a mão num Pinot Noir do que num Cabernet Sauvignon ou num Merlot.

Devo confessar que minhas experiências com a Pinot Noir se dividem entre o antes e o depois de meu renascimento como enófilo. Lembro de ter provado e gostado de várias garrafas de Pinot Noir em minha rotina pregressa, mas desde que me lancei neste mundo enófilo ainda não encontrei aquela Pinot Noir que marcasse meu paladar de um modo que eu possa classificar como acima da média. Teria eu simplesmente tido sorte em meu passado leigo ou minha memória me prega peças? Neste ano que passou, ou os Pinot Noir que tomamos eram somente corretos e sem atrativos olfativos/gustativos de nota ou eles simplesmente se mostravam desequilibrados, seja num aspecto demasiadamente aguado (como o francês Fraçois Labet Ile de la Beauté VdP, figurinha fácil nas cartas de vinho dos restaurantes da cidade) ou excessivamente acarvalhado (o norteamericano Bridlewood Monterey County, por exemplo).

Bridlewood Monterey County Pinot Noir 2012

Tenho perfeita ciência de que o berço original da Pinot Noir é a super-hiper-mega badalada região francesa da Borgonha, ou Bourgogne no idioma do finado diretor underground Jean Rollin. A regra dita que todos os vinhos tintos da Borgonha são feitos com 100% de Pinot Noir, e sendo assim é natural concluir que os melhores Pinots vêm de lá. O grande problema é que os melhores vinhos da Borgonha têm preços completamente fora da casinha - são aqueles que se enquadram nas famosas appellations que nem mesmo chegam a trazer o termo Bourgogne no rótulo. E se há um Bourgogne no rótulo devemos ter em mente que apesar dos preços mais acessíveis estamos diante de um engarrafamento regional, desprovido de senso de terroir e muito provavelmente produzido a partir de colheitas de vários produtores. Enfim, um vinho de qualidade inferior.

Se o vinho francês é muito caro ou mesmo complicado de se entender, o novo mundo se mostra um pouco mais receptivo para quem deseja se aprofundar no universo da Pinot Noir. Basta focar nossos esforços em exemplares provenientes de regiões demarcadas, que costumam aparecer nos rótulos de AVAs, DOs ou DOCs acompanhadas de indicações de terroir ou com uma designação de Single Vineyard. A probabilidade de ficar na mão é maior em apelações genéricas como California ou Valle Central, muito embora isso não seja regra (como no caso do Bridlewood mencionado acima). Mas vamos admitir, é muito mais fácil se deparar com um Sauvignon Blanc de qualidade do que com um Pinot Noir de igual calibre em denominações genéricas.

Não posso esquecer também dos Spätburgunder alemães (é desse jeito que a Pinot Noir é chamada na terra de Werner Herzog), que ouvi dizer por aí que são muito bons. Nunca provei um, mas qualquer dia vai.


Para finalizar, um fato interessante que descobri é que a Borgonha não é feita somente de Pinot Noir. Sim, claro, a região compreende também a área de Beaujolais e seus ainda mais polêmicos vinhos feitos com a uva Gamay. Entretanto, apesar dos tintos da Borgonha serem todos elaborados a partir de Pinot Noir, a verdade é que as vinícolas cultivam também outras variedades que podem entrar na composição da AOC Bourgogne Passe-tout-grains (que-passem-todas-as-uvas). As duas cepas principais, Pinot Noir e Gamay, podem ser misturadas a Chardonnay, Pinot Blanc e Pinot Gris provenientes dos mesmos vinhedos que produzem os rótulos de maior renome. Trata-se porém de um blend teoricamente leve, brilhante e feito para consumo rápido.

Não faço a mínima ideia de quanto custa um Bourgogne Passe-tout-grains, mas vou ficar de olho entre uma e outra garimpada em busca da melhor Pinot Noir que puder degustar. Atualmente minha busca pessoal é por um Pinot com perfil mais frutado, sem passagem por carvalho ou com muito pouca madeira, que seja quase imperceptível e não influencie o paladar. É uma busca que tem a probabilidade de me levar a exemplares mais aguados do que desequilibrados, mas eu assumo o risco. Além disso, aparentemente existem experiências de corte entre Pinot Noir e Syrah feitas na Califórnia, na Suíça, na Nova Zelândia e na Austrália. Vou ficar de olhos bem abertos!

Referências de pesquisa para este texto:
http://www.wine-searcher.com/grape-384-pinot-noir
http://vinepair.com/wine-blog/myth-busted-pinot-noir-is-not-the-only-grape-that-is-legal-for-making-red-wine-in-burgundy
http://www.winespectatorweekly.com/drvinny/show/id/5036
http://www.steveheimoff.com/index.php/2012/10/24/pinot-noir-to-blend-or-vineyard-designate
http://www.wine-searcher.com/grape-1921-pinot-noir-syrah

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