Os mais antenados no universo enófilo sabem que o título brasileiro do filme corresponde à forma como ficou conhecida a famosa degustação às cegas promovida em 1976 pelo então comerciante britânico Steven Spurrier, onde vinhos californianos derrotaram alguns dos mais renomados rótulos de Bordeaux e da Borgonha num júri formado por célebres degustadores franceses. O episódio mudou para sempre a reputação dos vinhos californianos (especialmente na região de Napa Valley) e de vinhos do novo mundo em geral, além de catapultar ainda mais a carreira de Spurrier mesmo com a revolta momentânea dos franceses contra sua pessoa.
Considerando que o filme é uma produção norteamericana, quanto há nela de verídico em relação aos fatos documentados?
A primeira coisa a se dizer, obviamente, é que não se deve esperar um retrato fiel do verdadeiro julgamento de Paris. Afinal, o longa-metragem lança mão de muitas sequências fictícias de cunho dramático/cômico no intuito de criar tensão, suspense e expectativa, seja ela narrativa ou puramente romântica. Sim, há várias pessoas reais retratadas na película, mas duvido muito que a caracterização das situações lhes faça jus, haja vista o processo que o verdadeiro Steven Spurrier ameaçou abrir contra os produtores, alegando que sua representação no cinema seria falsa, difamatória e depreciativa.
Na história do filme, as aspirações do comerciante Spurrier (Alan Rickman) são alimentadas pelas conversas com um vizinho de negócios e amigo de taça (Dennis Farina) que acabam por convencê-lo a organizar uma degustação às cegas que colocará os vinhos da Califórnia contra os famosos vinhos franceses. Enquanto Spurrier degusta e escolhe as melhores garrafas de vinhos em vinícolas de Sonoma e de Napa Valley, a outra metade da história se concentra sobre o Chateau Montelena, conduzido pelo proprietário Jim Barrett (Bill Pullman) e por seu filho surfista de espírito livre Bo (Chris Pine). Ao mesmo tempo em que se esforça para obter o melhor suco de Chardonnay possível de suas videiras, Jim se vê assombrado pela ameaça de falência. Já o filho trabalha e se diverte na companhia do melhor amigo e enólogo da vinícola Gustavo Brambilia (Freddy Rodriguez), mas logo começa a arrastar a asa para uma recém-chegada e bela aprendiz (Rachael Taylor).
Tecnicamente, O Julgamento de Paris é um deleite para os enófilos. Há uma infinidade de belas locações e paisagens relacionadas ao universo vinícola, e muito da linguagem do meio aparece no roteiro descompromissado, que não exige nenhum esforço para ser acompanhado. A leveza da história é potencializada pela subtrama envolvendo o jovem triângulo amoroso, que nada acrescenta à linha narrativa principal e serve somente como chamariz de público, num recurso de fácil identificação para a plateia em geral. Tamanha é a superficialidade do romance que um dos pilares do triângulo é abandonado após cumprir seu papel dramático, retornando somente no final para a esperada catarse emotiva. Tudo é muito previsível, mas o mais difícil mesmo é aguentar a peruca desgrenhada que arranjaram para Chris Pine (o capitão Kirk da nova encarnação cinematográfica de Star Trek). Rachael Taylor (uma boa atriz que se perdeu depois de um promissor início de carreira, tendo visivelmente roubado a cena de Megan Fox no primeiro Transformers) não tem muito com o que trabalhar além de ser a principal presença feminina da história, que nada aprende e que serve somente de colírio visual. A participação de Eliza Dushku, por exemplo, é mínima, mas ela tem mais importância que Taylor no desfecho do filme. Freddy Rodriguez é a anomalia maior em relação à realidade da história, uma vez que seu enólogo só viria a trabalhar no Chateau Montelena após a famosa degustação (o verdadeiro enólogo Mike Grgich foi eliminado nas revisões do roteiro, e teria sido encarnado por Danny DeVito).
Ainda no elenco principal, Bill Pullman faz o dever de casa com a austeridade que o papel exige, enquanto Dennis Farina brilha no pouco tempo que tem em cena. Quanto ao saudoso Alan Rickman, se sua fleuma britânica foi capaz de fazer justiça à persona de Steven Spurrier não sei, mas basta dizer que ator preserva aqui a veia sarcástica que caracteriza a maior parte de suas interpretações no cinema, todas variações em maior ou menor grau do papel que o deixou famoso para o mundo (o bandido Hans de Duro de Matar). Mesmo considerando-o um bom ator, o verdadeiro Steven Spurrier se sentiu insultado porque tinha na época 34 anos, ao contrário dos 61 de Rickman quando o interpretou.
Como diversão passageira O Julgamento de Paris não faz feio. É um filme bonito, bem interpretado e que ousa contar mais uma vez a inesperada vitória do perdedor sobre um oponente tido como imbatível. Só não assista esperando um tratado de enologia ou uma narrativa cerebral pontuada por relações bergmanianas.
O verdadeiro Steven Spurrier no julgamento de Paris
Alguns fatos interessantes relacionados ao filme
Numa produção rival que estava em vias de ser realizada na mesma época com o título original de The Judgement of Paris, a ideia era ter Hugh Grant ou Jude Law na pele de Spurrier. Os produtores tentaram impedir a realização do longa de Randall Miller com base em alegações de que eles teriam os direitos de filmagem do livro escrito pelo jornalista George Taber da revista TIME (o único a estar presente durante o fatídico evento de 1976, interpretado no filme por Louis Giambalvo). O livro de Taber, no entanto, teria sido publicado após a conclusão do roteiro do filme de Miller, e nenhuma influência teria tido sobre suas passagens fantasiosas. No final das contas, esta outra versão da história nunca chegou a ser filmada, assim como os chiliques de Spurrier e de alguns outros não chegaram a impedir a realização do trabalho que hoje tem o título abrasileirado de O Julgamento de Paris.
A vinícola onde foram feitas as filmagens, Kunde Family Winery, se beneficiou bastante do filme e hoje recebe muitos visitantes que o assistiram. Até mesmo o ringue de boxe que aparece na história permanece preservado em seu devido lugar.
O diretor Randal Miller, que solidificou sua carreira com trabalhos leves como este, Baila Comigo e o elogiado CBGB – O Berço do Punk Rock (que também tem Alan Rickman no elenco), protagonizou um episódio bastante triste em 2014, quando uma diretora assistente de sua equipe morreu atropelada por um trem durante uma filmagem não autorizada. Responsabilizado pela negligência da produção, que foi interrompida e nunca retomada, Miller passou um ano preso e está proibido de exercer qualquer atividade relacionada a cinema por mais nove anos.
Algumas opiniões pessoais
Nenhuma menção é feita no filme ao famoso Cabernet Sauvignon da Stag’s Leap Wine Cellars, o vinho que desbancou os até então imbatíveis franceses de Bordeaux. O roteiro é focado exclusivamente no Chardonnay do Chateau Montelena, que saiu vitorioso diante dos alardeados Chardonnays da Borgonha. Considerando o que eu havia lido até então sobre o julgamento de Paris, confesso que eu desconhecia completamente o fato de que também houve um embate entre vinhos brancos. Seria a simples omissão da categoria dos brancos em qualquer menção relacionada ao evento mais um sinal evidente de como o vinho branco é injustamente depreciado em relação ao tinto?
Por fim, se eu tivesse que escolher um ator para interpretar Steven Spurrier em outro filme eu sugeriria Edward Norton, Martin Freeman ou Liam Neeson.
E vocês, leitores enófilos ou cinéfilos, quem escolheriam?
Referências de pesquisa para este texto:
http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/1558855/Films-at-war-over-fall-of-French-wine.html
http://www.ridgewine.com/about/explore/judgment-of-paris
http://www.sfgate.com/wine/article/Chateau-Montelena-More-than-Bottle-Shock-3260538.php
http://www.imdb.com/title/tt0914797
http://en.wikipedia.org/wiki/Judgment_of_Paris_%28wine%29
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