quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Vinhos de mesa e as uvas americanas

Alguém por aí já se perguntou o porquê dos vinhos de mesa brasileiros serem tão massacrados por crítica e público, todos doutrinados a apreciarem somente os vinhos feitos de castas que vieram de berço europeu e pertencem à espécie Vitis vinifera?

Não vale alegar que é porque tais vinhos são feitos de uvas americanas, “não adequadas” à produção de vinho.

Certo dia, enquanto eu degustava um Merlot encorpado, o questionamento subiu-me à mente como as cristalinas borbulhas de um bom espumante. Qual o motivo de tanto desprezo, uma vez que – excetuando os produtos suaves que recebem adição de açúcar – os vinhos de mesa são produzidos exatamente da mesma forma que os vinhos considerados finos?

Foi então que comecei a pesquisar sobre os vinhos de mesa brasileiros e suas origens, e sobre onde eu poderia encontrar produtos equivalentes fora do país. Vou tentar resumir os resultados de minhas muitas leituras e as eventuais mudanças que pretendo fazer em minha forma de enxergar os vinhos de mesa.


A origem da diferença

A origem do desprezo pelos vinhos de mesa nacionais é histórica, e se estende muito além de nossas fronteiras. Foi na Europa, conhecida também como Velho Mundo e historicamente considerada o berço da civilização moderna, que a bebida chamada vinho evoluiu por séculos. As uvas utilizadas no continente, referidas obviamente de castas europeias e pertencentes à espécie Vitis vinifera, são todas as que hoje conhecemos como fonte dos “verdadeiros” vinhos. Cabernet Sauvignon, Merlot, Chardonnay, etc.

Como era de se esperar, com a colonização dos demais continentes as uvas Vitis vinifera se espalharam pelo planeta. O Novo Mundo foi invadido e vagarosamente infestado por estas castas nobres, enquanto algumas das variedades locais, comumente denominadas uvas americanas e não pertencentes à variedade Vitis vinifera, resistiram à invasão estrangeira por serem nativas e naturalmente mais adaptadas ao solo local. As uvas americanas perseveraram principalmente nas regiões onde as cepas europeias mostraram dificuldade em se adaptar nos mesmos padrões de qualidade e volume.

A inevitável mistura de uvas de vários continentes e os cruzamentos entre as espécies (forçados ou não) resultaram nas chamadas uvas híbridas, que em geral apresentam resistência maior às doenças e ao frio, e assim como as americanas possuem um perfil gustativo e aromático distinto das já estabelecidas uvas do velho mundo.

Fisicamente, as uvas americanas diferem das uvas europeias na menor espessura de suas cascas e no tamanho do fruto, que em média é muito maior. É por isso que as uvas americanas são mais indicadas ao consumo in natura. Além disso, sua menor concentração de açúcar tende a render mostos menos alcoolicos, o que aliado aos aromas diferenciados resultam em vinhos de natureza completamente distinta daqueles produzidos com castas europeias.

Hoje em dia os vinhos feitos a partir de uvas americanas são produzidos exclusivamente nas Américas, mas em sua maior parte nos Estados Unidos, no Canadá e no Brasil. Acredito que no início da invasão estrangeira eles tinham todas as chances de se manterem em pé de igualdade com os vinhos feitos com uvas europeias, mas não foi isso o que aconteceu. Principalmente no Brasil.

fonte: Wine Folly

Por que vinho de mesa?

O termo “de mesa”, como difundido em terras tupiniquins, é uma designação unicamente associada às uvas de mesa, que são aquelas que consumimos in natura e pertencem em sua maioria às variedades de uvas americanas da espécie Vitis labrusca e outras espécies híbridas. Vinhos elaborados a partir de castas Vitis vinifera são vinhos “finos”.

Dito isso, é preciso deixar claro que o vinho de mesa como conhecemos por aqui não é o mesmo vinho de mesa de países como a França (Vin de Table / Vin de France) ou a Itália (Vino da Távola). Lá estes vinhos são feitos com as mesmas castas Vitis vinifera das AOCs e DOCs, a única diferença é que eles não seguem nenhuma das regras estabelecidas por essas normas. E esses vinhos podem ser secos ou “suaves”, cujos correspondentes na França e na Itália seriam os moelleux e os amabile, respectivamente.

Tudo bem que em sua grande maioria os vinhos de mesa de lá também sejam produzidos de maneira mais simples e visando volume, mas sempre existem exceções em matéria de qualidade. Aqueles super-toscanos safados, por exemplo, já foram vino da távola um dia, e só deixaram de sê-lo quando algum figurão benevolente sugeriu a criação da categoria IGT.

Vale lembrar que na Europa a vinificação de uvas de origem americana é terminantemente proibida. Portanto, é impossível encontrar por lá um vinho de mesa que seja similar aos vinhos de mesa brasileiros.


A legislação brasileira faz sentido

Ao analisar a origem e a evolução do vinho no Brasil, percebe-se que as regras da legislação do mercado de vinho brasileiro fazem completo sentido. Estas regras surgiram principalmente por causa dos vinhos de mesa, que são feitos a partir de uvas americanas e vendidos com as mais variadas proporções de açúcar em sua composição final. Secos são os vinhos com teor de açúcar abaixo de 4 g/l, suaves são aqueles com teor acima de 20 g/l e tudo o que está entre estes extremos é demi-seco.

O grande problema é que a classificação acima também é aplicada ao vinho fino feitos de castas europeias, seja ele nacional ou importado, algo que lá fora simplesmente não existe. E se isso causa confusão quando os vinhos importados entram no país, o problema é de quem bebe e precisa se informar melhor. As importadoras não têm culpa, pois só estão cumprindo com as normas.

A marginalização dos vinhos de mesa brasileiros

Ainda que haja uma conscientização cada vez maior sobre a alegada superioridade dos vinhos feitos a partir de variedades europeias, é inegável que os vinhos de mesa (especialmente os suaves) ainda figuram como a principal preferência da maioria da população brasileira. Basta tocar no assunto em qualquer roda casual de conhecidos das mais diversas classes sociais. Se entre dez pessoas alguém além de você mencionar Merlot ou Sauvignon Blanc, já se está no lucro. Infelizmente, a probabilidade maior é de que algum engraçadinho do sexo masculino tire sarro da sua cara se você disser Pinot Noir em voz alta.

Brincadeiras à parte, os motivos para o que mencionei acima são muitos, sendo o maior deles o baixo custo final do vinho de mesa para o consumidor. Mas é preciso destacar também a sua inicial facilidade de apreciação (são docinhos e leves) e o grande período histórico que precedeu a abertura de mercado ocorrida na década de 90. A este último aspecto soma-se a inércia e a letargia dos produtores nacionais de vinhos de mesa, que com raras exceções nada fizeram para tentar elevar o status de seus produtos diante da classe fina emergente. O desprezo foi e é tão grande em alguns casos que hoje em dia muita gente toma coquetel composto achando que é vinho.

Façamos uma comparação rápida entre o mercado de vinhos feitos com uvas americanas do Brasil e dos EUA, por exemplo. Quais são os vinhos de mesa brasileiros famosos que estampam no rótulo as variedades de uva a partir das quais são produzidos? Praticamente nenhum. São quase todos tintos/brancos de mesa suaves/secos. Muito provavelmente por uma decisão safada de marketing, a única cepa que aparece com proeminência em rótulos de maior saída é a tal Bordô, uma híbrida de várias Vitis labrusca cujo nome correto é Yves Noir. Que chique seria se esse nome passasse a ser usado, não? Aposto que teria muito entendido por aí que começaria a degustar Bordô como se estivesse bebendo Syrah.

Já nos Estados Unidos a história parece ser diferente. Vinho de mesa é uma designação meio sem sentido, uma vez que qualquer vinho de preço reduzido é genericamente qualificado como Table Wine. Os Barefoot, Yellow Tail e Woodbrigde, por exemplo, são considerados vinho de mesa para os norteamericanos. E quanto aos vinhos feitos com variedades nativas? Ora pois, os rótulos de lá mostram (com orgulho, talvez?) nomes como Concord e Niagara, que são as mais conhecidas para nós brasileiros. Mas há ainda cepas diferentes e interessantes como Catawba, Chancellor, Muscadine/Scuppernong, Norton, Aurore e Mustang, para ficar em algumas das uvas mais proeminentes de outras espécies que não pertencem nem à vinifera e muito menos à labrusca.


Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde os vinhos feitos de uvas americanas não parecem ter vergonha nenhuma de sua própria identidade, para achar informações de como é a composição dos blends dos vinhos de mesa nacionais ou encontrar designações varietais como Isabel ou Niagara é preciso ir um pouco mais a fundo neste mercado relativamente marginalizado, saindo do circuito viciado dos supermercados ou viajando ao coração da região sul do país.

Seguem alguns exemplos de vinhos de mesa secos onde a variedade é devidamente indicada no rótulo:

Sei que isso pode soar como sacrilégio para alguns, mas depois de ler bastante sobre o assunto tomei a decisão de não mais olhar com maus olhos os vinhos de mesa secos. Mas calma lá, isso não quer dizer que vou começar a garimpar empórios de bairro ou encher minha adega com esses tipos peculiares de vinho. O que quero dizer é que sejam eles feitos a partir de Chardonnay ou de Niagara, de Cabernet Sauvignon ou Concord, tratarei a todos com o mesmo respeito e reverência. Já os vinhos de mesa suaves continuam mais ou menos como estavam, relegados a festas juninas e encontros familiares onde a escolha de bebida esteja completamente fora de minha alçada.

Referências de pesquisa para este texto:
http://winefolly.com/review/native-wine-grapes-of-america
http://winefolly.com/tutorial/table-grapes-vs-wine-grapes
http://www.stufftoblowyourmind.com/blog/american-wine-from-american-grapes
http://palatepress.com/2010/06/wine/wine-indigenous-american-grape-varieties-a-primer
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bord%C3%B4_(casta_de_uva)
http://en.wikipedia.org/wiki/Ives_noir
http://www.avindima.com.br/?p=6013
http://www.cnpuv.embrapa.br/tecnologias/cultivares
http://revistas.fca.unesp.br/index.php/energia/article/view/998/pdf_23
http://tudodevinho.blogspot.com.br/2016/04/o-vinho-fino-e-o-vinho-de-mesa-no-brasil.html
http://en.wikipedia.org/wiki/Vin_de_France
http://en.wikipedia.org/wiki/Table_wine

13 comentários:

  1. COMO FAÇO PARA SEGUIR O BLOG???? MEU EMAIL carla@albrae.com.br

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    1. Olá, Adenauer.
      Notei que você já está seguindo pelo blogger, mas de qualquer forma adicionei o recurso de "seguir por email" também.
      Abraço e obrigado por ler!

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  2. Edward,o fato de as principais marcas brasileiras de vinho de mesa não especificarem as uvas, eu acredito que seja por serem sempre misturas de diferentes variedades, e não tentativa de se omitir qual a variedade.
    Também não creio que esses vinhos nos Estados Unidos tenham mais orgulho ou reconhecimento do que têm no Brasil. Podem até não ter uma legislação que os diferencie, mas creio que a situação de mercado seja tão marginalizada quanto: podem ser facilmente encontrados, pode ser que sejam consumidos em grande quantidade por seu público alvo, mas não são exatamente respeitados por quem tem costume de beber os vinhos 'finos'.

    Além disso, quanto à relevância da legislação, eu discordo de que "o problema é de quem bebe e precisa se informar melhor". Eu creio que a legislação tem (ou deveria ter) exatamente o intuito de definir termos que sejam claros para que consumidores não precisem virar especialistas em cada tipo de produto. Claro, no caso da definição de vinho de mesa, a legislação tem seus pontos positivos e negativos, neste sentido. E apesar da confusão que possa causar com a nomenclatura européia, é melhor com a classificação, do que sem ela.
    Por outro lado, quando tratamos da regulamentação de nível de açúcar, que você mencionou, em que a nova regra define vinhos secos com uma margem mais restrita, eu acredito que ela só causa distorções sem propósito, pois inúmeros vinhos secos (que definitivamente não podemos sentir nenhuma ponta de doçura no vinho) são classificados como semi-secos. Concordo que o importador não tem culpa, tem que seguir a regra. Mas neste caso, não creio que a culpa deva recair sobre o consumidor, e sim sobre a legislação 'revolucionária'. Essa é a minha opinião.

    Abraço!

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    1. Obrigado pela contribuição, Rodrigo, é exatamente isso que eu queria em resposta. Opiniões diversas principalmente de pessoas mais experientes.

      Sobre o tema da popularidade e dos mercados dos vinhos de uvas americanas, o que escrevi foi reflexo da percepção que tenho (talvez eu deva revisar o texto e incluir 1 verbo ou 2). Espero numa viagem futura poder vivenciar a realidade dos vinhos dos EUA, enquanto isso a curiosidade permanece.

      E você tocou na palavra-chave aí: respeito. Hoje degusto vinho "fino", mas assumo que /quero/ respeitar os "de mesa" secos que encontrar mundo afora.

      Ao mencionar que o problema é de quem bebe e precisa se informar melhor eu meio que desabafei sobre o fato de um monte de gente erroneamente rotular os demi/semi-secos como imbebíveis por "terem açúcar". Terei entrado na esfera do enochato? Socorro, longe de mim querer isso!!! Hehuhuehuehe

      Forte abraço!

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  3. Edward, tenho visto certos críticos de vinhos que condenam os vinhos finos produzidos por algumas vinícolas boutique brasileiras a partir de uvas americanas, em especial da Isabel, alegando que estes vinhos têm defeitos e principalmente, têm a presença de metanol na sua composição. Tem procedimento esta questão do metanol relacionado aos vinhos produzidos com uvas americanas? Obrigado. Marco Vasques

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  4. Olá, Marco.

    Rapaz, essa pergunta aí me fez abrir um site após o outro e me ocupou um tempão! Tanto é que acho que vou escrever uma postagem sobre isso, nem que seja para registrar essa inesperada pesquisa.

    Mas resumidamente o que pude averiguar até agora é que isso foi pura difamação de europeus revoltados contra a pobre da Isabel. Que jamais teve qualquer culpa de nada, exceto por uma suspeita não confirmada de que suas mudas teriam sido responsáveis por propagar a filoxera na Europa.

    Enfim, um verdadeiro bullying enológico!

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    1. Permita-me dar minha contribuição a respeito deste tema (metanol).
      Inicialmente, considerando o fato de que o metanol é altamente tóxico, caso fosse um risco consumir esses vinhos, teríamos inúmeros casos de morte ou cegueira causada pela intoxicação por metanol, já que eles são muito consumidos, e em vários casos, certamente, consumidos em grandes quantidades.
      Por outro lado, encontrei um estudo que examinou as quantidades de diversas substâncias em sucos de diferentes tipos de uva (Isabel, Bordô, Concord e Cabernet Sauvignon):
      http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84782006000200055
      O que pode parecer surpreendente para nós leigos (pelo menos, pra mim, foi), em todos os casos, foi identificado metanol, sendo significativamente maior nas uvas americanas. O texto explica que isso se deve à maior quantidade de pectinas nessas uvas. No entanto, o texto não menciona se as quantidades encontradas são um risco à saúde, ou não.
      Então procurei mais a respeito dos níveis de intoxicação por metanol, e achei este artigo:
      http://www.medicinanet.com.br/conteudos/revisoes/5406/intoxicacao_por_metanol.htm
      Pelo que pude assimilar, toda bebida alcoólica tem um pouco de metanol, mas os níveis normais são considerados seguros. Eventuais produtos mal feitos e não fiscalizados podem conter níveis altos, e causar intoxicações.

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    2. Eu cheguei a artigos similares aos que você menciona, Rodrigo.

      E acho que esse tema merece algum tipo de registro, vou começar a cozinhar uma postagem para complementar esta.

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  5. Cara, muito legal a tua abordagem. Gostei mesmo. Tenho um conhecido que elabora anualmente um branco seco de niágara. Vinho feito com o mínimo de sulfitos, sem chaptalização e sem ajustes na cor. Aliás fica com aquele tom levemente cobre. Vou dizer que dá gosto tomar aquele niágara. Abs.

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    1. Obrigado, xará.

      É bom saber que vinhos com esse perfil continuam a ser feitos e tenham público. Vamos tentar valorizar os produtos vinificados de forma correta, independente de seu berço e do bully-marketing.

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  6. A DACOSTA - comércio e distribuição de bebidas, antigamente conhecida por AVC –Artur Valente da Costa, Ldª, tem uma nova ferramenta de trabalho e comunicação, que irá fortalecer, através de novos serviços e aplicações, que estão à disposição dos nossos parceiros, a relação de confiança já existente.
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    Neste portal, que estamos certos que irá ter grande receptividade da sua parte, não poderá efectuar qualquer tipo de pagamentos.
    Visite-nos, obrigado

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  7. Muito bom e acrescento um fato curioso que passou num Globo Rural, onde o dono da Casa Valduha falava da evolucao do vinho, passando para variedades europeias, mas citava que seu pai ainda preferia o vinho colonial com uvas americanas.

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